Foto: Vaticano

Adeus, Francisco: o papa que desceu à Terra

Morreu Francisco. E, com ele, parte do mundo que ousava ainda acreditar na ternura como gesto político. Nenhum outro pontífice do nosso tempo andou com tamanha leveza sobre os escombros da modernidade. Nenhum outro nos ensinou, com tão poucos dogmas e tantos gestos, que a santidade pode — e deve — se parecer com um abraço.

Jorge Mario Bergoglio foi o papa dos que jamais entraram numa catedral. O papa dos becos, dos exilados, das mães solteiras, dos transexuais rejeitados pelos altares. Foi também o papa dos fiéis em crise, dos agnósticos sensíveis, dos céticos de joelhos. Despido de títulos, Francisco devolveu à Igreja um atributo que parecia ausente: a humanidade.

Seus sapatos ortopédicos caminharam entre cardeais vestidos de púrpura e crianças cobertas de poeira. Preferiu a Casa Santa Marta aos palácios, usou crucifixos de ferro em vez de ouro, dispensou os tronos para sentar-se à mesa comum. Sua escolha de nome — em homenagem a São Francisco de Assis — não foi estética, mas profética. O homem de Roma se fez irmão, e nisso construiu a revolução mais radical da Igreja desde o Concílio Vaticano II.

Quando muitos esperavam um papa da liturgia, Francisco foi o papa do olhar. Quando pediam sentenças, ele oferecia escuta. E onde o mundo via pecado, ele enxergava ferida.

Foi amado pelos simples e odiado por doutores.

Entre críticas eclesiásticas, resistiu. Entre ameaças internas, persistiu. E, mesmo sem alterar dogmas seculares, modificou o modo de dizê-los. Numa só frase — “Quem sou eu para julgar?” — desarmou séculos de condenação. Sua teologia não cabia em encíclicas, mas em telefonemas para mães de filhos gays, em visitas surpresas a asilos, em orações silenciosas por vítimas de estupros e guerras.

Francisco era a vertigem de um Vaticano que ainda caminha sobre colunas patriarcais. Foi progressista para os reacionários, e conservador para os apressados. Mas sua bússola sempre foi o Evangelho vivido entre os desterrados, nunca o aplauso de assembleias.

A imagem mais emblemática de seu papado talvez tenha sido a de março de 2020, na noite chuvosa da pandemia: a Praça de São Pedro deserta, e ele, sozinho, diante do Cristo. Aquele velho curvado pela idade, pelas dores no quadril e pelas feridas do mundo, ergueu uma prece que parecia conter todos os nomes. Naquele instante, a Igreja inteira coube no silêncio de um só homem.

Seus detratores, blindados por títulos e púlpitos, jamais entenderam: Francisco não era um gestor de dogmas, mas um cuidador de almas.

Cuidava ao chamar os pobres pelo nome, ao abrir o Vaticano a populações invisíveis, ao pedir perdão pelas falhas institucionais. Cuid0u até o fim recusando as armadilhas do clericalismo.

Nos últimos meses, o cansaço o alcançou. Respirava com dificuldade. Já não falava com a mesma força. Mas jamais silenciou a misericórdia. E hoje, enquanto o mundo se despede dele, somos nós que ficamos com a missão mais difícil: continuar.

Continuar sua prática de amor sem exclusão, suas reformas — não de cargos, mas de consciências. Continuar o anúncio de que fé e compaixão não são antônimos. Continuar, sobretudo, sua coragem de ser gentil num mundo armado.

Francisco não deixará sucessor à altura. Sua herança não cabe num conclave. Está nos corações que se voltaram à fé pela ternura de um sorriso. Nos jovens que descobriram que Igreja também é encontro, e não só culpa. Nos velhos que choraram com sua delicadeza.

Ao morrer, não levou glórias. Levou nomes. E, entre eles, o de cada um que um dia pensou: “Talvez Deus ainda me queira perto.”

Adeus, Francisco.

Que o céu te receba como recebestes os abandonados: com os olhos baixos, as mãos abertas e o Evangelho nos dedos.

Não foste infalível. Foste necessário.

Não foste santo. Foste inteiro.

E isso, no mundo de hoje, é mais raro que milagres.

Amém.

Fabrício Correia é escritor, crítico de cinema, jornalista, historiador e professor universitário. Presidiu a Academia Joseense de Letras e integra a União Brasileira de Escritores – UBE e a Academia Brasileira de Cinema. Especialista em Musicoterapia e Vibroacústica. É CEO da Kocmoc New Future, responsável pela agência de notícias, “Conversa de Bastidores” e o portal de entretenimento “Viva Noite”. Apresenta o programa “Vale Night” na TH+ SBT.

WhatsApp
Facebook
Twitter