A história não é um relato de acasos. Como historiador digo que é o reflexo das escolhas de um povo, das omissões de seus líderes e das estruturas que moldam uma sociedade. Jair Bolsonaro não caiu do céu. Foi fabricado, peça por peça, ao longo das décadas, por um Brasil que nunca aceitou de fato a democracia como um princípio inegociável. Bolsonaro é o sintoma de um país que sempre flertou com o autoritarismo, que jamais puniu seus opressores, que tratou direitos humanos como concessão e que ainda prefere o ódio ao progresso.
O bolsonarismo não é um desvio na trajetória do Brasil – é a expressão pura de tudo o que grande parte da sociedade teve que reprimir com o avanço civilizatório mundial. A ascensão dos direitos das mulheres, da população negra, da comunidade LGBTQIA+, dos povos indígenas, da justiça social como um todo, tudo isso criou um ressentimento profundo nos que sempre se beneficiaram de um país excludente. O Brasil nunca se reinventou como nação plural. Ele apenas empurrou para debaixo do tapete o seu lado mais reacionário, esperando o momento certo para fazê-lo emergir novamente. Esse momento chegou com Bolsonaro.
Seus eleitores não o escolheram apesar do que ele representa, mas exatamente por isso. Seu desprezo pelas instituições, sua glorificação da ditadura, seu discurso infantilizado e violento, sua total incapacidade administrativa – tudo isso não foi visto como defeito, mas como autenticidade. Bolsonaro não prometeu governar, ele prometeu destruir. E para milhões de brasileiros, isso foi o suficiente.
O 8 de janeiro de 2023 não foi um ato de desespero de uma massa desinformada. Foi um golpe tentado por aqueles que nunca aceitaram a democracia como um fim, mas apenas como um meio para garantir seus privilégios. A invasão do Congresso, do STF e do Palácio do Planalto foi a materialização da mentalidade bolsonarista. A violência contra os símbolos da democracia não veio de um vácuo, mas de anos de incitação ao ódio, de deslegitimação do processo eleitoral, de ataques sistemáticos contra a imprensa e contra qualquer forma de oposição.
Bolsonaro não apenas sabia o que estava acontecendo – incentivou. Passou meses sem reconhecer a derrota nas urnas, alimentando a paranoia coletiva de seus seguidores. Fingiu surpresa quando seus apoiadores invadiram Brasília, mas a verdade é que essa era a única forma lógica de desfecho de seu governo. O bolsonarismo sempre foi sobre violência, sempre foi sobre destruição, e o 8 de janeiro foi apenas a explosão inevitável dessa mentalidade.
A anistia que se desenha para os golpistas segue a mesma lógica de impunidade que permitiu a Bolsonaro existir. O Brasil nunca puniu seus torturadores, nunca julgou seus militares golpistas, nunca tratou seu passado autoritário com a seriedade necessária. O resultado disso é um ciclo contínuo de golpes, tentativas de golpes e ameaças de golpes. Porque o Brasil é um país que nunca aprendeu que democracia sem justiça não é democracia – é apenas um intervalo entre ditaduras.
O bolsonarismo está longe de acabar. Sua chama permanecerá na frustração de uma parte da sociedade que não quer se adaptar a um mundo onde sua opinião não é mais a única que importa. Sobrevive no discurso de ódio, no negacionismo científico, na glorificação da ignorância. Sobrevive porque o Brasil nunca tratou seus traumas históricos, nunca desmascarou sua própria face sombria.
Se há algo a ser aprendido com os últimos anos, é que a democracia não pode ser ingênua. Não há diálogo com quem quer destruir as instituições. Não há reconciliação com quem acredita que eleições só são válidas quando vencem. Bolsonaro foi a febre, mas a doença ainda não está erradicada. O Brasil só terá futuro se decidir, de uma vez por todas, que não há mais espaço para o passado que ele representa. Sem punição, sem memória e sem compromisso com a verdade, a história se repetirá – e, da próxima vez, talvez o monstro vença.
Fabrício Correia é escritor, historiador e professor universitário. É CEO da Kocmoc New Future, responsável pela agência de notícias “Conversa de Bastidores”. Membro da União Brasileira dos Escritores.