O Brasil assiste à radicalização de um fenômeno que há anos se desenha nos bastidores da política: a transformação da fé em arma de guerra, em estratégia eleitoral, em combustível para projetos de poder que nada têm de espirituais. A disputa entre Silas Malafaia e Marcos Pereira não é um episódio isolado nem uma divergência doutrinária, mas a face visível de uma engenharia política que se articula em torno da eleição presidencial de 2026. O bolsonarismo, longe de ser um movimento orgânico ou homogêneo, está em disputa. O trono da direita evangélica está vago, e a guerra pela sucessão já começou.
Silas Malafaia é o homem-bomba dessa engrenagem. Explosivo, barulhento, incontrolável, um agitador profissional que sempre soube como insuflar massas e conduzir revoltas sem precisar ocupar um cargo eletivo. Ele opera na retórica da indignação, na mobilização passional, no discurso que transforma política em cruzada, adversários em inimigos e pragmatismo em traição. Seu papel no bolsonarismo é essencial porque ele mantém a chama do radicalismo acesa, impedindo qualquer tentativa de moderação ou transição para um projeto de poder mais institucionalizado. Malafaia não é um político de estrutura, mas de destruição. Ele não constrói pontes, ele as queima. Não negocia, ele impõe. Seu objetivo não é governar, mas manter a militância em estado permanente de guerra.
Marcos Pereira, por outro lado, é o operador silencioso, o arquiteto dos bastidores, o homem que compreende que a fé pode ser convertida em bancadas, ministérios, concessões de rádio e TV, influência legislativa e força dentro do sistema político. Se Malafaia é o apóstolo do caos, Pereira é o cardeal do poder. Como presidente do Republicanos, tem em suas mãos uma estrutura partidária que pode ser decisiva em 2026, seja para um candidato bolsonarista puro-sangue, seja para uma alternativa de direita que busque se descolar do radicalismo. Ele sabe que o tempo da pura gritaria já passou e que, para se manter no jogo, é preciso transitar entre a lealdade à base evangélica e a capacidade de se articular nos corredores do poder.
O estopim desse conflito foi a questão da anistia aos golpistas do 8 de janeiro. Malafaia esperava que Pereira assumisse uma postura mais agressiva, que liderasse o discurso de perseguição política e que reforçasse a narrativa de que Bolsonaro e seus aliados estão sendo vítimas de uma ditadura judicial. Pereira, porém, preferiu o caminho da técnica, argumentando que anistia não pode ser concedida a quem ainda não foi condenado. Esse cálculo, embora juridicamente correto, foi interpretado por Malafaia como covardia e traição. O pastor da Assembleia de Deus Vitória em Cristo não aceita qualquer postura que não seja de enfrentamento absoluto ao sistema, e para ele, Marcos Pereira é um obstáculo porque representa a ala bolsonarista que quer sobreviver institucionalmente.
A guerra entre os dois é um microcosmo do que acontece na direita brasileira. De um lado, os incendiários que querem manter a política em permanente estado de revolução. De outro, os operadores que compreendem que, sem articulação e sem diálogo com o establishment, o bolsonarismo corre o risco de se tornar um culto de nicho, incapaz de voltar ao poder. A disputa entre Malafaia e Pereira é, na verdade, uma disputa pelo rumo da direita evangélica em 2026.
O bolsonarismo evangélico se estruturou como uma aliança informal entre líderes religiosos que viram em Bolsonaro a chance de consolidar sua presença no Estado. Foi um projeto de poder muito mais sofisticado do que parecia: envolveu a expansão de igrejas, a influência sobre milhões de eleitores, a ocupação de espaços estratégicos no governo e a criação de uma narrativa segundo a qual a política brasileira é uma guerra entre cristãos e inimigos da fé. Esse modelo, no entanto, entrou em crise com a derrota de Bolsonaro. Sem a força da máquina pública, sem um candidato natural para 2026 e sem a certeza de que a população seguirá mobilizada no mesmo nível de 2018 e 2022, a aliança começa a rachar.
O bolsonarismo sobrevive porque se fragmenta. Cada uma dessas cisões é, ao mesmo tempo, uma crise e uma estratégia. Malafaia cumpre o papel de garantir que a militância continue engajada e indignada, sem jamais reconhecer a legitimidade do governo Lula e mantendo a retórica de que o Brasil vive sob um regime de exceção. Pereira, por sua vez, prepara o terreno para a disputa real, negociando apoio, mantendo seu partido relevante e construindo as condições para que a bancada evangélica continue a ser um dos blocos mais poderosos do Congresso.
A grande pergunta que esse embate coloca é quem, de fato, representará a direita evangélica em 2026. O bolsonarismo já demonstrou ser uma força política mutante, que se adapta às circunstâncias e sobrevive mesmo quando seu líder está acuado. A disputa entre Malafaia e Pereira não será a última. O campo da direita religiosa está em ebulição, e o que está em jogo não é apenas a lealdade a Bolsonaro, mas o futuro de um projeto que pretende moldar a política brasileira pelos próximos anos.
A religiosidade, que deveria ser um espaço de transcendência e espiritualidade, tornou-se um instrumento de controle e de mobilização eleitoral. O Estado laico, longe de estar protegido, está cada vez mais subordinado a interesses religiosos que ultrapassam o debate moral e entram diretamente na engenharia do poder. O que se vê não é a influência da fé na política, mas a conversão da política em um campo de batalha religioso, onde a governança é secundária e o objetivo principal é a dominação cultural e ideológica.
O Brasil de 2026 não será apenas uma disputa entre partidos, mas entre projetos de poder que operam em esferas paralelas. A política tradicional seguirá seu curso, com suas negociações e suas alianças pragmáticas. Mas, ao lado dela, seguirá a política da fé, disputada entre os que querem incendiar o país e os que querem governá-lo. Malafaia e Pereira são apenas dois lados de uma mesma guerra, onde o que está em jogo não é a religião, mas quem terá o direito de usá-la para impor sua vontade sobre a democracia.
Fabrício Correia é escritor, jornalista, historiador e professor universitário. Presidiu a Academia Joseense de Letras e integra a União Brasileira de Escritores – UBE. É CEO da Kocmoc New Future, responsável pela agência de notícias, “Conversa de Bastidores”.