Foto: Arte Digital

O Mundo Cruel da TransThomazFobia

Na tentativa de zombar de uma política pública, um vereador de São José dos Campos revelou muito mais do que despreparo: revelou um projeto de exclusão. Ao dizer “não estude, seja um travesti”, ele não apenas ironizou a reserva de vagas para pessoas trans aprovada pela Unicamp. Ele violentou, com uma única frase, milhares de histórias de vida. Histórias que desafiaram o abandono familiar, o preconceito escolar, a marginalização compulsória, o assassinato social. Histórias que hoje, pela primeira vez, recebem um gesto institucional de reconhecimento: a política de cotas.

A frase é curta. Mas está cheia de veneno. Primeiro, por sua estrutura. “Seja um travesti” é, por si só, transfóbica. O artigo definido masculino é usado não por descuido gramatical, mas por convicção ideológica. É a forma como parte da sociedade insiste em recusar a identidade de gênero das travestis e mulheres trans. É o modo como se desumaniza, se nega, se impede que o feminino seja reconhecido em corpos que não cabem na cisgeneridade normativa. Não é erro: é escolha. E como toda escolha política, carrega consequências.

Em segundo lugar, a frase ironiza a política de cotas como se ela fosse uma gincana de privilégios, onde “levantar uma bandeira” vale mais do que estudar. Como se uma identidade de gênero fosse um acessório performático e não uma condição de existência atravessada por dor, exclusão e coragem. A cota, nesse discurso, é vista como ameaça ao mérito. Mas sejamos honestos: o que ameaça, de fato, é a possibilidade de que outros corpos cheguem onde antes só um tipo de corpo era autorizado.

A Unicamp não está corrompendo a meritocracia. Está salvando a dignidade. Ao reservar vagas específicas para travestis, pessoas trans e não-binárias, ela segue o caminho já trilhado por mais de uma dezena de universidades brasileiras, entre elas a UFBA, UFSB, UFABC, UnB, UFSC, UFSM, UFF, Unifesp. Essas instituições entenderam que igualdade não se alcança com discursos, mas com estruturas. E que equidade é tratar desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades. Isso não é ideologia. Isso é justiça social.

O ataque à cota trans escancara o medo da redistribuição de poder. Quem sempre teve lugar cativo se assusta quando vê o sistema abrir espaço para quem sempre foi marginalizado. Quando uma travesti entra na universidade, é o modelo de sociedade inteira que precisa ser revisto. Porque ela não entra sozinha — ela traz junto consigo todas as perguntas que esse país evitou por séculos. Sobre raça, sobre classe, sobre gênero, sobre quem é autorizado a sonhar.

A zombaria atinge também, direta ou indiretamente, Duda Salabert, uma das parlamentares mais preparadas do Brasil, mulher trans, professora, deputada federal. Sua imagem é usada no vídeo como símbolo do que se quer ridicularizar: uma travesti com voz. Uma mulher trans com mandato. Uma educadora com voto. Mas o que para o vereador é motivo de escárnio, para o Brasil é sinal de esperança.

A frase “não estude, seja um travesti” é, na verdade, um grito de desespero de quem perdeu o controle sobre o acesso à legitimidade. Porque agora, finalmente, a legitimidade está sendo partilhada. E isso dói em quem sempre achou que pertencimento era herança.

A política de cotas não é paternalismo. É política de Estado baseada em dados, demandas sociais, tratados internacionais e princípios constitucionais. E o ingresso pelas cotas trans exige, além do Enem, autodeclaração, relato de vida e validação por comissão. Ou seja: há critério, há seriedade, há ética. O que falta, muitas vezes, é apenas vergonha na cara de quem insiste em zombar disso.

No Brasil, onde 90% das travestis ainda têm a prostituição como única alternativa de renda e a expectativa de vida dessa população não passa dos 35 anos, oferecer uma vaga universitária é muito mais que uma oportunidade: é uma chance de vida. Uma chance de existência com dignidade. De moradia, de renda legal, de cuidado com a saúde, de cidadania plena.

Zombar disso é zombar da vida.

E quando o escárnio parte de um agente público, ele se converte em violência de Estado.

É preciso dizer: quem ataca a cota trans não está defendendo o mérito — está defendendo o monopólio do privilégio. Está se recusando a aceitar que um país diverso precisa ter políticas diversas. E que os muros simbólicos da universidade precisam ser derrubados se quisermos reconstruir o Brasil sobre bases minimamente éticas.

A cota trans não é uma ameaça à educação. É o começo da sua redenção. É o Brasil dizendo, mesmo que tarde: “nós falhamos com vocês. Agora vamos tentar reparar.” E isso não se zomba. Se honra.

A nova geração, felizmente, já sabe disso. Ela não quer um país onde o saber é privilégio. Quer um país onde o saber liberta. E onde travestis, pessoas trans e não-binárias não sejam mais estatística de morte, mas parte viva da história.

Fabrício Correia é educador, escritor, jornalista, historiador e professor universitário. Especialista em Acessibilidade, Diversidade e Inclusão, pela UNISE-PR. Coordenou os cursos de pós-graduação sobre Diversidade. Presidiu a Academia Joseense de Letras e integra a União Brasileira de Escritores – UBE. É CEO da Kocmoc New Future, responsável pela agência de notícias, “Conversa de Bastidores”.

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