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Mario Vargas Llosa: o homem que escreveu com as veias abertas

Morreu Mario Vargas Llosa. É como se a América Latina perdesse o pulso. Um dos últimos escritores que ainda escreviam com sangue. Com sangue quente, latino, de quem não aceitava que a abstenção virasse regra e que a covardia se confundisse com diplomacia. Um dos poucos a não se curvar. Um dos últimos a não se vender.

Desde “Os Chefes”, livro que o lançou com brutalidade aos 23 anos, sua literatura foi uma luta contra a impostura. A escola militar que sufocava meninos em “A Cidade e os Cachorros” era o retrato sujo do autoritarismo disfarçado de formação. “A Casa Verde” um soco narrativo, um entrelaçado de histórias imorais num país sem espinha. Com “Conversa na Catedral”, atingiu o cume da literatura latino-americana: o retrato de uma nação corrompida desde a alma. E a pergunta — “em que momento o Peru se ferrou?” — tornou-se a pergunta de todos nós, brasileiros, mexicanos, argentinos, colombianos.

Não há em Vargas Llosa espaço para fuga. Nem nas formas, nem nos temas. Nunca driblou o conflito: colocava-o no centro. Em “Pantaleão e as Visitadoras”, escancarou a hipocrisia militar com um riso ferino. Em “Tia Júlia e o Escrevinhador”, tratou da própria biografia como um romance. Em “A Guerra do Fim do Mundo”, saiu do Peru e veio ao Brasil para mergulhar nos escombros de Canudos, na insanidade dos messianismos, na tragédia da ignorância manipulada. Nenhum brasileiro escreveu Canudos como ele. Ninguém teve coragem. Ele teve.

Vargas Llosa foi fiel à literatura, e não aos seus pares. Rompeu com a Revolução Cubana em 1971, quando Fidel mandou o poeta Heberto Padilla se humilhar publicamente. Não perdoou. Foi atacado por todos os lados. Não recuou. Quando concorreu à presidência do Peru, perdeu. Preferiu perder a corromper suas ideias. Disse, depois, com ironia e alívio: “voltei ao que sou — um escritor”. E isso ele foi como poucos. Escrevia de pé, com espinha. Sem concessão, modismo, não tinha pudor ao pensar.

Ganhou o Nobel de Literatura em 2010. Disseram que era pelo conjunto da obra. Não era. Era por ser intransigente com a mediocridade. A Academia Sueca premiava nele o que falta até hoje ao mundo: coragem com conteúdo. Estilo com nervo. Técnica com indignação. A literatura, em Vargas Llosa, era uma arma de precisão, jamais de propaganda. Por isso escreveu até os últimos dias. “O Herói Discreto”, “Cinco Esquinas”, “Tempos Ásperos”. Cuspiu verdades, ainda que dolorosas, com a arquitetura de um mestre.

Fez inimigos. Muitos. O que o movia era o compromisso com a liberdade — mesmo quando isso implicava nadar contra a corrente. Foi liberal em meio à hegemonia de esquerda nos círculos intelectuais. Foi político onde todos se refugiavam no estético. Foi direto onde os outros pediam desculpas antes de opinar.

A vida pessoal foi um romance à parte. Casou-se com a tia. Depois com a prima. Depois, já velho, com a ex-mulher de Julio Iglesias. Amou com escândalo. Viveu com intensidade. E nunca pediu licença para ser quem era. Só quem conhece profundamente a literatura sabe o que significa isso: não apenas viver como se escreve, mas escrever como se vive.

Hoje, não se termina um ciclo. Encerramos uma era. A era em que escritores escreviam com ideais. Em que livros ardiam na mão do leitor. Em que ler Vargas Llosa era sair suado, exausto, transformado. Seria simples dizer que deixa um legado — isso é pouco. Para mim, seu leitor voraz, deixa um espelho. E nesse espelho vemos o que somos, o que fingimos ser, o que nunca teremos coragem de admitir.

Mario Vargas Llosa morreu. Mas sua literatura não nos permitirá repouso. Ainda o ouviremos em cada página, perguntando com raiva e ternura: em que momento deixamos de merecer escritores assim?

Leiam-no. Releiam. Não pelo culto. Sem ele, o mundo ficou mais raso. Mais cínico. Mais sonso. E menos verdadeiro.

Adeus, Vargas Llosa.

Fabrício Correia é escritor, crítico de cinema, jornalista, historiador e professor universitário. Presidiu a Academia Joseense de Letras e integra a União Brasileira de Escritores – UBE e a Academia Brasileira de Cinema. É CEO da Kocmoc New Future, responsável pela agência de notícias, “Conversa de Bastidores” e o portal de entretenimento “Viva Noite”. Apresenta o programa “Vale Night” na TH+ SBT.

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