Foto: ALESP

Dr. Elton, silenciar não é cuidar: o risco de legislar o luto e censurar a dor

Em um país que mal consegue garantir acesso básico à saúde mental, um projeto de lei que tenta regular a maneira como a imprensa deve noticiar casos de suicídio soa menos como um gesto de cuidado e mais como uma tentativa mal disfarçada de controle narrativo. Apresentado pelo deputado estadual Dr. Elton (União Brasil), o projeto em trâmite na Assembleia Legislativa de São Paulo propõe diretrizes específicas para a cobertura jornalística de suicídios, com justificativas que, à primeira vista, evocam um zelo técnico alinhado às recomendações da OMS. Mas basta um olhar mais atento para perceber que há algo mais grave em jogo.

Sob a justificativa de evitar o chamado “efeito Werther” — fenômeno que descreve o aumento de casos de suicídio após a ampla divulgação de casos anteriores — o projeto pretende restringir a veiculação de imagens das vítimas, detalhes dos métodos e até mesmo a localização dos fatos. Soa prudente, mas, na prática, a medida flerta perigosamente com a censura. E a censura, sobretudo quando disfarçada de boa intenção, é uma afronta não apenas ao jornalismo, mas à própria sociedade.

Profissionais da comunicação, psiquiatras, psicólogos e familiares que enfrentaram o luto sabem: falar sobre suicídio com responsabilidade é essencial. Silenciar, omitir, restringir ou maquiar as dores públicas em nome de uma suposta preservação pode ter o efeito inverso — mascarar o problema, atrasar o debate e perpetuar a negligência. O Brasil já vive uma epidemia silenciosa de sofrimento psíquico. Fingir que ela não existe apenas por medo de seu reflexo nos jornais é jogar a sujeira para debaixo do tapete e culpar o espelho pela bagunça.

É preciso dizer com todas as letras: noticiar suicídios com critério não é incitar. É alertar. É trazer à tona uma realidade brutal que ceifa vidas diariamente, especialmente entre jovens, indígenas, LGBTs e populações em situação de vulnerabilidade. Não é a notícia que mata. O que mata é a ausência de diálogo, o estigma, a precarização do SUS, o desmonte da rede de CAPS, a falta de psicólogos em escolas e postos de saúde, o descaso institucional com a dor.

Outro ponto alarmante do projeto é sua interferência no processo jornalístico de apuração. Em muitos casos, quando uma morte ocorre por queda ou outro meio ambíguo, o trabalho do repórter se baseia na informação disponível até a confirmação oficial. O projeto parece ignorar isso — como se a imprensa devesse simplesmente se calar diante da dúvida, condenando a população à desinformação ou, pior, ao boato de esquina.

A proposta do deputado, que talvez seja movida por uma visão limitada do papel da mídia ou por um desejo apaziguador mal calibrado, ignora que liberdade de imprensa e saúde pública não são inimigas. Pelo contrário: são aliadas. Informação responsável salva vidas. O que falta não é controle editorial, mas investimento em políticas públicas sérias de saúde mental. O que precisamos é de mais centros de escuta, campanhas educativas, formação para professores, prevenção nas redes sociais, e não mordaças legislativas.

Falar sobre suicídio exige preparo, sensibilidade e coragem. Exige compromisso ético — e isso a imprensa séria já tem. O que não se pode aceitar é que, em nome da prevenção, se tente transformar jornalismo em obituário domesticado, amarrado por diretrizes que desinformam em vez de proteger.

O suicídio não é um tabu a ser escondido. É uma ferida coletiva que precisa ser exposta para, só então, começar a cicatrizar.

Fabrício Correia é jornalista e professor universitário. CEO da Kocmoc New Future, responsável pela agência de notícias “Conversa de Bastidores”.

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