Meu nome é Brunielly Lemos e sou uma mulher trans de 30 anos. Passei por muita coisa e começo minha história com a frase de que a mulher trans tem sempre seu sonho roubado por uma sociedade que ainda é preconceituosa e que muitas vezes não aceita a transexualidade.
Eu sempre soube que eu era uma criança diferente. Já na pré-escola minha voz era mais fina que a dos outros meninos e meus gestos mais afeminados. Por esses motivos, comecei a sofrer bullying desde cedo. Lembro de um episódio que me marcou muito: aos 6 anos de idade um grupo de crianças vendou meus olhos e me levou para o parquinho. Lá, abaixaram minhas calças e me empurraram para um formigueiro, de onde saí machucada e bastante traumatizada. É uma cena que nunca sairá da minha cabeça.
Me tornei uma criança muito assustada, que tinha medo de tudo, do escuro, das pessoas, da rejeição e de tudo o que poderiam fazer comigo. Nessa época, eu já sabia que meu caminho não seria nada fácil. As pessoas me excluíam na escola e nas brincadeiras da rua… sabem quantas vezes fiquei sentada na calçada, esquecida, esperando uma oportunidade para participar, mesmo que como café com leite? Inúmeras.
Aos 12 anos, então, comecei a perder a timidez e iniciei a dura caminhada contra as “brincadeiras”. Ainda com pouca idade, passei a não aceitar mais. Posso dizer que estava me empoderando, mesmo que do meu jeito. Em casa, para piorar, tinha um pai dependente químico, que usava diferentes tipos de drogas e que violentou a minha mãe por muito tempo. Hoje estão separados. Éramos muito religiosos e, quando começaram a perceber transformações no meu comportamento, decidiram me exorcizar. Acreditavam que eu estava “possuída por espíritos malignos”, pensamento que eu mesma acreditei e que durante muito tempo me trouxe sofrimento. Quando penso na minha infância, praticamente só consigo lembrar de momentos de dor, dificuldades e superação.
Aos 17, consegui bolsas de estudo para cursos de dança, teatro, maquiagem e cabeleireiro. Fui presidente do grêmio estudantil pelos grupos de dança e teatro da igreja, além de ter idealizado e realizado eventos culturais em parceria com o projeto Escola da Família na minha cidade, São José dos Campos (SP).
Na sequência, ainda tentando me encontrar diante das oportunidades, comecei a trabalhar em uma agência de modelos, pela qual viajei pelos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, maquiando modelos durante eventos. Minha relação com a maquiagem começou aí. Pouco tempo depois, fui me descobrindo mais e comecei a ter coragem para me vestir com roupas “femininas” para sair à noite.
Foi colocando peruca e me maquiando que eu trouxe à tona a Brunielly que, até então, eu não podia ser no dia a dia. Nesse período de descobertas, passei também a tomar anticoncepcional para aumentar os glúteos e dar forma feminina ao meu corpo. Na época, ainda não havia ou não era divulgada a terapia hormonal, oferecida pelo SUS, com acompanhamento médico e psicológico, então o meu processo foi mais difícil, pois eu precisei buscar informações do zero e entender sozinha quais os caminhos eu tinha como opção para ser quem eu realmente era.
Aos 19 anos, fui demitida da agência de modelos onde trabalhava e voltei a morar com a minha mãe, que ainda não conseguia entender e nem aceitar o meu processo de transição. Encontrei muitas dificuldades para me recolocar no mercado de trabalho, procurei muito, mas não consegui nada devido à minha condição de gênero e a minha transexualidade.
Ao me assumir, perdi muito além do emprego. Perdi meus amigos, o apoio da minha família e a aceitação das pessoas com as quais até então convivia. Sem trabalho, como muitas outras trans, acabei encontrando na prostituição o meio para sobreviver. O cenário para travestis e garotas de programas é de extrema violência. Para escapar da prostituição, migrei para o tráfico de drogas. Conheci uma mulher que me apresentou um ponto de venda onde eu conseguiria fazer dinheiro. E ganhei dinheiro. Quanto mais eu ganhava, mais eu transicionava, mas de uma forma que não era saudável o meu corpo e muito menos para a minha mente. Ingeri hormônios sem acompanhamento médico, além de medicamentos que prometiam mudar o corpo.
Pega em flagrante pela polícia em São Paulo, fui presa e transferida para a penitenciária Osvaldo Cruz, na região de Presidente Venceslau. Fiquei presa junto com homens, tive a minha cabeça raspada, apanhei do Choque. Um ano e meio dos piores dias da minha existência, mas que me fizeram refletir sobre a minha própria vida e que me fizeram decidir lutar por um futuro diferente.
Em 2015, minha pena de 3 anos caiu para 1 e meio. Fui solta. Voltei para São Paulo somente com o alvará de soltura em mãos e decidida a recomeçar. Com passagem pela polícia e já assumida como mulher, não consegui emprego e fui diagnosticada com depressão de transtorno de ansiedade. Ficava me perguntando quando – e se – as coisas iam melhorar. Quem iria contratar uma trans e ex-presidiária?
Na busca por emprego, as poucas oportunidades que apareciam vinham com a solicitação de que eu me vestisse de homem. “Os clientes não vão gostar de uma mulher trans trabalhando aqui”, eu ouvia. Me sentia muito mal e estava prestes a desistir. Achava que realmente não havia espaço para mim nesse mundo.
No ano seguinte, 2016, conheci a Avon por meio de uma Empresária da Beleza, que é uma espécie de coordenadora das representantes da marca. Ela me convidou para iniciar o trabalho na revenda de produtos e decidi fazer o cadastro. Como já tinha feito curso de maquiagem, passei a visitar as clientes para apresentar os catálogos, os produtos e, também, dar consultoria de automaquiagem. Fui conquistando a confiança das pessoas a minha volta e encontrando um ambiente em que eu era aceita pelo que eu era, pelo que eu sabia e podia ensinar.
Minhas vendas foram aumentando mês a mês e comecei a ficar conhecida pela consultoria de maquiagem que eu dava. Outras representantes passaram a me pedir dicas. Lembro que durante uma das várias reuniões em que eu participei, uma gerente de vendas me convidou para assumir o papel de Empresária da Beleza. Ganhei então minha própria equipe.
Em 2018, conheci o Instituto Avon, que trabalha em prol do enfrentamento da violência contra mulheres e meninas. Participei do 1º Prêmio Juntas Transformamos, que reconhece iniciativas criadas pelas mais de 1,3 milhão de representantes e Empresárias da Beleza e que contribuem com o tema. Decidi inscrever uma ideia que eu tinha há anos guardada dentro de mim e que se chamava “Avon abraça as trans”. Fui premiada, ganhei uma mentoria e ainda realizei um grande sonho: fundar a minha própria associação.
A Transbordamos finalmente saiu do papel em 2019 e já atendeu, desde então, mais de 2 mil pessoas trans, oferecendo apoio, cursos de capacitação profissional, testes de HIV, consulta médica, sessões de terapia, doações de cestas básicas, orientação jurídica, além de promover eventos culturais.
Aproveito esse momento de reflexão para olhar de novo para a minha volta e ver o quanto caminhei e onde cheguei. Olho de novo para minha própria história e reconheço o quanto eu posso inspirar outras pessoas a não desistirem de si mesmas. Hoje me sinto feliz e realizada em ser a Brunielly que sempre sonhei e em poder levar minha história para milhares representantes da beleza Avon e para centenas de pessoas que passam pela Transbordamos ou pelo Instituto Avon, onde sou embaixadora trans. Entendo que a minha missão é transformar vidas.
Posso dizer que infelizmente a mulher trans tem sempre o seu sonho roubado. São sonhos e planos minados por uma sociedade que ainda é preconceituosa e que muitas vezes não aceita a transexualidade. Mas se ela confiar em si mesma, se ela se aceitar e não desistir, é possível. Eu resgatei os meus sonhos! A expectativa de vida de uma mulher trans é 35 anos. Mas eu quero e vou viver mais. Tem muita coisa que eu quero e devo fazer. Muita gente que eu quero ajudar. E eu quero envelhecer empoderada, com muita vida e feliz!
Não podemos mudar o passado, mais se nós trabalharmos o hoje podemos com certeza mudar o amanhã. Seja você um agente de transformação dentro da sociedade.
* Brunielly Caroline Lemos nasceu em São José dos Campos, é presidente da associação Transbordamos, embaixadora Trans do Instituto Avon, ativista e militante pelos corpos trans e direitos humanos.
Fonte: Agência AIDS