Hoje, diante de câmeras que tudo registravam, o jornalismo brasileiro caiu na latrina. E não tropeçou em fio de microfone ou em sinal de transmissão. Foi na própria espinha.
Num país onde a dor escorre pelas calçadas com naturalidade, onde a imprensa ainda é a única ponte entre o abismo e a esperança, um homem com microfone na mão empurrou uma colega de profissão, ao vivo, para protagonizar a informação. Um empurrão. Ao vivo. Para tomar a vez. Para se afirmar. E talvez — o que é mais grave — sem sequer notar a violência cometida.
A cena é curta, mas dura como sentença. Ele, repórter da Band. Ela, repórter da Record. A pauta, o desaparecimento de duas adolescentes. A matéria, a urgência. O gesto, inequívoco: ele estende o braço e desloca a colega que já estava ali. Agressivamente. Uma desautorização física diante de milhões. E a televisão seguiu adiante, acreditem se quiser.
Há muito não se trata mais de jornalismo. Trata-se de audiência. Não de apurar, mas de aparecer. Aquilo que chamávamos de “repórter de rua” virou personagem central. O foco se deslocou da história para quem a conta. E, nesse deslocamento, perdemos o rumo. Sem citar os apresentadores. Hoje não se preocupam em estimular ainda mais a violência quase instigando a sociedade a fazer justiça com as próprias mãos. Um horror, que mancha quase todas as emissoras.
Não me peçam paciência com isso. A imprensa tem um papel. Ela é instrumento de mediação entre o fato e o entendimento público. Ela não existe para brigar, disputar espaço físico ou verbal em cima do sofrimento alheio. Quando um jornalista empurra outro diante de uma câmera, ele está empurrando o ofício inteiro para o lixo. E não é força de expressão.
Não venham com desculpas de calor do momento, de pressão, de adrenalina. Nenhum princípio sobrevive a violência. Não importa a pressa, não importa a exclusividade, muito menos o link ao vivo. O que houve não foi um deslize — foi um colapso. E se passarmos pano, se tratarmos como exagero, estaremos assinando a certidão de óbito da profissão que juramos honrar.
O episódio de hoje exige muito mais do que uma retratação. Exige autocrítica de redações, posicionamento de diretores, silêncio de apresentadores que normalizam a barbárie e, sobretudo, exige memória. O jornalismo brasileiro já foi grande demais para caber nesse tipo de cena.
Quando comecei, dizia-se que o microfone era uma extensão da escuta. Hoje, virou bastão de corrida. Quem passa primeiro atropela o outro. E tudo se justifica pelo “ao vivo”. Não. Não aceito.
Jornalismo que empurra a ética é jornalismo que já caiu. E, se não tomarmos cuidado, ninguém mais vai levantar.
Fabrício Correia é escritor, jornalista e professor universitário. Com 30 anos de profissão, já passou pelos principais veículos de imprensa do estado de São Paulo.