Há instantes na história institucional que não pertencem apenas ao presente. São aqueles em que o tempo, pressionado pela força dos fatos, se curva — e corrige. A eleição de Ana Maria Gonçalves para a cadeira nº 33 da Academia Brasileira de Letras, aos 128 anos da fundação da Casa, é desses momentos que ardem e purificam ao mesmo tempo. Não se trata de um gesto de reconhecimento. Trata-se de restituição.
A ABL foi criada em 1897 por Machado de Assis, ele mesmo um homem negro, filho de um pintor de paredes e de uma lavadeira, nascido no morro do Livramento, no Rio de Janeiro. Apesar disso, por mais de um século, a instituição operou como se não lhe coubesse a tarefa de refletir o país real. Preferiu o verniz à substância, cultivando hereditariedade simbólica ao invés da pluralidade viva. No coração de uma nação miscigenada, a Casa das Letras espelhou os limites de uma elite que, mesmo culta, optou por ignorar os fundamentos mais profundos da cultura brasileira: a oralidade negra, a literatura periférica, os gestos narrativos ancestrais, a memória da dor como força criadora.
É nesse contexto que a eleição de Ana Maria Gonçalves assume caráter inaugural, embora aconteça mais de um século depois. Autora de “Um defeito de cor”, romance que já entrou para a história como uma das maiores realizações literárias do século XXI, Ana Maria inaugura uma presença inédita — a de uma mulher negra no plenário da ABL — e reconcilia a instituição com a pulsação original de seu fundador. Ela devolve à Casa o que ela renegou por tempo demais: o compromisso com a verdade da linguagem, a complexidade da história e a imensidão do Brasil.
Seu romance, com mais de 900 páginas, é literatura de resistência, um tratado de humanidade escrito com a paciência dos grandes romancistas do século XIX e a contundência dos intelectuais negros do século XXI. Ao narrar a trajetória de Kehinde — menina arrancada do Reino do Daomé e trazida ao Brasil como mercadoria — constrói uma narrativa que desafia o apagamento histórico com método e beleza.
É preciso dizer com todas as letras: nenhuma eleição recente para a ABL possui o peso histórico e simbólico que esta carrega. E não é apenas porque ela corrige uma ausência. Mas porque ela traz, consigo, um projeto literário que repensa o papel da ficção na reconstrução da memória nacional. Ana Maria Gonçalves representa uma geração de escritoras negras que não escrevem a partir da margem, mas a partir do centro que sempre lhes foi negado. Não reivindicam espaço: revelam que ele sempre existiu, apesar das portas.
Quando a Portela desfilou “Um defeito de cor” na Sapucaí em 2024, o romance atravessou os limites da página e se transformou em cultura popular, em gesto coletivo. Agora, com a eleição de sua autora à ABL, essa travessia chega à instituição que por décadas se manteve distante das expressões mais profundas da brasilidade. É o reconhecimento da literatura como espaço de disputa simbólica, de formação crítica, de reencantamento do país.
A Academia Brasileira de Letras, afirma — ainda que tardiamente — que a grande literatura brasileira é negra, feminina, insurgente e fundadora. E que, enquanto houver palavras escritas com precisão e coragem, haverá história a ser revista.
Ana Maria não senta sozinha na cadeira 33. Com ela se sentam as mães que nunca tiveram lápis, as filhas que aprenderam a ler em silêncio, as avós que decoraram o mundo sem jamais terem sido lidas. Hoje, o tempo entrou na sala. E ficou de pé.
Fabrício Correia é escritor, jornalista e professor universitário com especialização em Acessibilidade, Diversidade e Inclusão. Presidiu a Academia Joseense de Letras.