O voto de Luiz Fux no julgamento de Jair Bolsonaro ao sustentar a incompetência do Supremo Tribunal Federal para analisar o processo por tentativa de golpe de Estado ficará entre esses episódios que revelam não apenas um posicionamento jurídico, mas a fragilidade de um país inteiro diante de suas instituições.
Não se trata aqui de um detalhe técnico, de uma disputa sobre foro ou competência. Trata-se do coração da República. Quando um ministro do Supremo, corte máxima da nação, declara-se impedido de julgar um ex-presidente que conspirou contra o Estado democrático, o gesto ecoa muito além das paredes do tribunal. Ele instala na sociedade a dúvida corrosiva: afinal, quem protegerá a Constituição quando ela estiver em risco?
O paradoxo é ainda mais brutal quando lembramos que foi em torno de Fux que nasceu o lema constrangedor da Lava Jato: “In Fux we trust”. À época, os procuradores e juízes da operação viam nele uma espécie de fiador dos atalhos jurídicos, alguém disposto a endossar uma cruzada que confundiu justiça com espetáculo. A Lava Jato prometia depuração moral, mas seu legado foi outro: um país atolado em nulidades, recursos e desconfiança. A cada sentença revertida ou prova anulada, a certeza de que vivemos em um sistema onde nada é definitivo.
Esse histórico torna ainda mais insuportável o gesto atual. O Supremo, que não hesitou em condenar rapidamente dezenas de cidadãos comuns pelos atos de 8 de janeiro, hesita diante do principal responsável político por insuflar o golpe. É impossível não enxergar aí uma seletividade que mina o senso de justiça. A lei que alcança os frágeis não pode se acovardar diante dos poderosos.
O risco maior é naturalizar esse vaivém. Quando decisões judiciais passam a soar como estratégias, e os votos parecem calibrados para cada contexto, a democracia perde substância. O que resta ao cidadão é a sensação de que tudo pode ser desfeito, de que o direito virou terreno de manobra. Essa é a essência da insegurança jurídica: não a ausência de leis, mas o seu uso errático, a serviço de conveniências.
Bolsonaro não está em julgamento apenas por si. O que se analisa é a resposta do Estado brasileiro à mais grave tentativa de ruptura desde 1964. Se tramar um golpe de Estado se resolve com nulidades, se a Constituição é refém de tecnicalidades, a mensagem que se transmite é devastadora: o crime contra a democracia pode até ser detectado, mas dificilmente será punido.
A História não absolve hesitações. O Supremo tem diante de si a chance de reconstruir a confiança que a Lava Jato dilapidou, de mostrar que não há espaço para relativizar a defesa da República. Condenar Bolsonaro não é gesto de revanche: é o mínimo necessário para que a democracia continue de pé.
Se o tribunal falhar, restará a nós, historiadores e cidadãos, registrar a ironia amarga de um país que acreditou confiar em seus juízes e descobriu, tarde demais, que eles também sabiam trair.
Fabrício Correia é escritor, jornalista, historiador e professor universitário. É CEO da Kocmoc New Future, responsável pela agência de notícias “Conversa de Bastidores”.