Foto: Reprodução

Os corpos na praça da Penha

O Rio amanheceu nublado, vinte e oito graus, abafado, pesado, o tipo de calor que não se mede em termômetro, mas na espessura do ar. E, ainda assim, essa temperatura diz muito sobre nós: há algo de simbólico em um dia quente demais para o luto e cinzento demais para o esquecimento. A cidade acordou suada, cansada, e no centro da Penha jazem jovens, estendidos no chão como se o corpo fosse a última forma de protesto possível. O sangue se mistura ao pó e à chuva leve, e o vento traz um cheiro de ferro que insiste em não ir embora.

Não há como descrever essa cena sem admitir a culpa coletiva que ela carrega. Não são apenas os mortos da vez, são os mortos de sempre. E o mais terrível é que, enquanto os rabecões chegam e as câmeras giram, a vida ao redor continua: o vendedor abre a banca, a mulher empurra o carrinho de pipoca, o mototáxi buzina, o menino passa chutando uma garrafa. A cidade aprendeu a desviar do sangue sem se espantar. A banalidade dessa imagem é o maior sintoma da nossa doença.

Esses jovens não morreram por acaso, nem por azar, morreram porque nasceram onde o Estado nunca chegou para oferecer vida. Morreram porque o país aprendeu a chamar punição de justiça, a confundir vingança com segurança. Morreram porque o racismo, disfarçado de política pública, ainda decide quem merece respirar. Cada um deles foi assassinado duas vezes: primeiro pela indiferença, que os laçaram ao crime, para depois serem alvejados pela bala do estado.

O que se vê na Penha é o retrato de um Brasil que se acostumou a empilhar corpos e desculpas. As autoridades repetem frases prontas: “combate ao crime”, “ação integrada”, “resposta necessária”. A imprensa anota, o povo comenta, e ninguém pergunta o que significa um Estado que só aparece para matar. Há uma frieza calculada em cada justificativa, uma normalização da barbárie que se repete como mantra nacional.

O clima nublado do Rio é quase um comentário divino sobre nós: o céu parece querer chorar, mas se contém. A cidade arde por dentro e se cobre de nuvens como quem tenta esconder a própria vergonha. O calor se mistura ao cheiro da pólvora, e tudo ganha o mesmo tom de concreto: cinza, espesso, letal.

Não existe “sucesso na operação”, há massacre, mais uma chacina. E um massacre que se repete tanto que já perdeu o nome. Quando o corpo é negro e jovem, a morte é chamada de rotina. O país que se orgulha da “alegria do seu povo” vive um luto não declarado, um genocídio permanente. Não há baile funk, nem estádio, nem desfile que apague o fato de que somos uma nação que extermina sua juventude mais viva.

Esses rapazes da Penha tinham rostos, amores, vontades pequenas, o churrasco do domingo, o corte de cabelo e o chaveado na sobrancelha, a chance de viver mais um verão, mas estavam nas mãos do crime e ao invés de saída não sobreviveram ao encontro com o fuzil. A sociedade que aplaude a morte acredita estar salvando a si mesma, mas é justamente aí que começa a morrer. Nenhum país que mata seus jovens permanece de pé por muito tempo.

A praça da Penha, hoje, é o retrato do nosso fracasso civilizatório. E o calor de vinte e oito graus, sob o céu fechado, parece vir da própria terra, como se o chão queimasse de vergonha. Porque, no fundo, o que ferve não é o ar é a culpa. E ela está por toda parte: nas mãos que disparam, nas bocas que se calam, nas consciências que preferem não ver e na figura sórdida de um governo que não tem legitimidade e se enaltece por cantar música cristã.

Um dia, talvez, o Rio volte a amanhecer limpo, e o sol bata na praça sem refletir no sangue. Mas enquanto fingirmos que isso é normal, enquanto aceitarmos a morte como método, seremos todos cúmplices desse calor que não passa , esse calor que vem dos corpos que deixamos esfriar.

Fabrício Correia é escritor, historiador e professor universitário com especialização em Acessibilidade, Diversidade e Inclusão.

WhatsApp
Facebook
Twitter