A eleição e a posse de Ana Maria Gonçalves na Academia Brasileira de Letras deveriam representar o ápice de uma reparação simbólica: a literatura brasileira, enfim, acolhendo o corpo e a voz que há séculos sustentam a própria língua. Mas o país que a recebe é o mesmo que ainda se recusa a se olhar no espelho. E o reflexo que se impõe é devastador. “Um Defeito de Cor”, o romance que consagrou a autora, torna-se agora diagnóstico nacional. O defeito não está na cor está no país.
A reação odiosa que se ergueu contra Ana Maria Gonçalves, sobretudo nos círculos da direita extremada, revela mais que preconceito. É sintoma de um projeto. O Brasil conservador, em sua face mais perversa, continua a sonhar com uma espécie de “pureza racial” travestida de tradição. É a nostalgia de um tempo em que o negro era força de trabalho e o branco, senhor da palavra. A ascensão de uma mulher negra, intelectual, reconhecida e devota das religiões afro-brasileiras, fere o pacto tácito da desigualdade que estrutura a sociedade. O ódio, nesse sentido, não é apenas moral é ontológico: é a recusa de admitir que a inteligência e a espiritualidade negras possam habitar os espaços do poder simbólico.
Ana Maria Gonçalves levou à ABL o que a Academia nunca soube pronunciar: o pretuguês, a oralidade africana que pulsa no coração do português do Brasil. Ao pedir a bênção da mãe, ao invocar Lélia Gonzalez, Conceição Evaristo e Leda Maria Martins, ela fez o que todo escritor autêntico deve fazer: devolveu à palavra o seu corpo. E foi exatamente isso que a extrema direita não suportou. Porque o que ela trouxe não é uma estética, é uma ética. Uma ética de resistência, de ancestralidade, de descolonização da linguagem.
A cada ataque contra a sua fé, contra o candomblé, contra o vestido costurado por mãos da Portela, expõe-se o mesmo vício antigo: a crença de que a cultura nacional deve ser branca, católica e domesticada. O Brasil racista tenta disfarçar o horror com o riso. Ironiza o terreiro, mas ajoelha-se diante do mercado. Idolatra a Europa, mas teme a África que o habita. E é nesse paradoxo que reside o verdadeiro “defeito de cor”: a impossibilidade de aceitar a própria origem como fonte de saber.
A extrema direita brasileira, ao atacar Ana Maria Gonçalves, não está debatendo literatura, está nitidamente reafirmando seu ideal de pureza, sua aversão ao múltiplo. É a velha necropolítica travestida de crítica cultural. É a tentativa de manter a ABL como um território asséptico, impermeável à voz das ruas, dos quilombos, dos terreiros e das mulheres negras. O racismo, nesse contexto, não é um desvio de conduta: é a conduta.
Ana Maria Gonçalves rompeu o círculo. Sua presença na Academia é um ato de insurgência estética e espiritual. Ao afirmar que quer “fazer avançar na Academia as coisas que nela sempre critiquei”, ela recoloca o verbo no lugar do medo. Ela transforma o salão dos imortais em encruzilhada; lugar de escolha, de travessia, de reinvenção.
O Brasil que a ataca é o mesmo que a lê em silêncio, porque sabe que seu livro o revela. “Um Defeito de Cor” é a metáfora perfeita para este país: uma nação que se imagina mestiça, mas ainda deseja a brancura como salvação. A imortalidade de Ana Maria Gonçalves, porém, está em outro plano, não no Petit Trianon da Academia, mas na herança das palavras que libertam. Ela nos lembra que o defeito é nosso. E que enquanto continuarmos a medir o valor de uma vida pela cor da pele, seremos uma república de sombras, incapaz de escrever, em sua própria língua, o nome da liberdade.
Fabrício Correia é escritor, historiador, jornalista e professor universitário. Presidiu a Academia Joseense de Letras e integra a União Brasileira de Escritores.



