A eleição de Edgard Telles Ribeiro para a Academia Brasileira de Letras não foi uma surpresa. Foi um acerto. Entre tantos nomes que circulam o cenário literário com o barulho da espuma, Edgard sempre foi um desses que preferem a profundidade da correnteza. Com discrição e substância, construiu uma obra que se impõe pelo rigor, pela elegância e pelo silêncio que só os bons escritores cultivam. A ABL, ao recebê-lo, reconhece sua trajetória e corrige uma lacuna.
Edgard começou onde tantos se perderam: na crítica de cinema. Aquela que se faz com leitura de imagem, com amor ao detalhe, com olho treinado. Escreveu nos suplementos de “O Jornal” e do “Correio da Manhã”, quando ainda se discutia roteiro como se discute música de câmara, e direção como se analisa poesia. Bons tempos. Migrou para o cinema com a naturalidade de quem já o compreendia por dentro. Estudou na UCLA, realizou filmes, teve um deles exibido na Quinzena de Realizadores de Cannes — o que já colocaria qualquer carreira em posição de honra. Não parou ali.
A literatura o chamou, como chama os que não têm pressa. Desde “O criado-mudo”, passando por “Lavras azuis da Amazônia” e “O impostor”, até chegar a “Jogo de armar”, seu romance mais recente, publicado em 2023, Edgard construiu uma biblioteca de si mesmo. Seus romances sussurram. São escritos em ritmo de respiração e com vocabulário que nunca se permite vulgarizar. Há neles uma harmonia entre forma e conteúdo que não precisa anunciar-se. Está lá, desde a primeira linha.
Em “O punho e a renda”, seu livro mais agudo, toca na ferida da ditadura com a compostura de quem sabe a gravidade da dor, mas também sua complexidade. O romance não se vale de atalhos morais nem cede ao melodrama. É um livro de tensão elegante, com personagens que caminham na beira do abismo sem cair no panfleto. Por esse título, recebeu o prêmio do Pen Clube — não como recompensa, mas como constatação.
A lista de prêmios é sólida, mas talvez o mais simbólico tenha sido o reconhecimento da própria ABL, que em 2006 premiou “Olho de rei” como a melhor obra de ficção do ano. E agora o convida à cadeira. Não como gesto de cortesia, mas por coerência.
Edgard também é diplomata. Um diplomata de carreira e convicção. Serviu nos Estados Unidos, no Equador, na Guatemala, na Nova Zelândia, na Malásia, na Tailândia. Nos três últimos, como embaixador. Em Brasília, chefiou o Departamento Cultural do Itamaraty no tempo em que Gilberto Gil era Ministro da Cultura — e os dois falavam a mesma língua. Foi autor da tese “Diplomacia cultural: seu papel na política externa brasileira”, referência até hoje. A cultura, para ele, nunca foi ornamento da política externa. Foi método, presença, política de estado.
É raro encontrar quem transite com autoridade por tantos mundos — cinema, diplomacia, literatura — e não perca o fio interno. Edgard preserva esse fio. Há uma coerência estética e ética que atravessa tudo o que assina. Seu estilo é contido, mas jamais frio. Suas opiniões não precisam de exclamações. O que pensa, escreve; o que escreve, permanece.
Ao chegar à ABL, não sobe. Chega. Não há pompa. Há justeza. Há o reconhecimento de uma escrita limpa, de um pensamento afiado, de uma carreira discreta e, por isso mesmo, monumental. A cadeira que ocupará terá nele um ocupante que não disputa espaço com ninguém. Edgard não precisa — já tem o seu há décadas, entre leitores atentos, embaixadas distantes e páginas que se recusam a envelhecer.
Um homem que sabe ouvir, ler, refletir, narrar. E que, em tudo isso, jamais precisou levantar a voz.
Fabrício Correia é escritor, crítico de cinema, jornalista, historiador e professor universitário. Presidiu a Academia Joseense de Letras e integra a União Brasileira de Escritores – UBE e a Academia Brasileira de Cinema. É CEO da Kocmoc New Future, responsável pela agência de notícias, “Conversa de Bastidores” e o portal de entretenimento “Viva Noite”. Apresenta o programa “Vale Night” na TH+ SBT.