A ligação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para Walter Salles, celebrando a vitória de “Ainda Estou Aqui” no Oscar como Melhor Filme Internacional, foi um gesto de reconhecimento e prestígio para o cinema brasileiro. O telefonema, impensável em governos anteriores, simboliza um esforço para reconstruir a ponte entre o governo e a indústria audiovisual, abalada nos últimos anos por cortes de investimentos e políticas restritivas. Mas, para além da comemoração, a grande questão permanece: o que precisa ser feito para que essa vitória não seja um caso isolado, mas parte de uma estratégia maior para consolidar o Brasil como uma potência cinematográfica?
O Oscar de “Ainda Estou Aqui” é uma conquista de Walter Salles e sua equipe, e de toda uma classe artística que, mesmo diante de dificuldades estruturais, continua produzindo obras de impacto global. O reconhecimento da Academia demonstra a força narrativa do cinema brasileiro, sua capacidade de emocionar, denunciar e transformar. No entanto, ele também reforça um ponto crucial: para que o audiovisual brasileiro prospere de forma consistente, são necessárias ações concretas que garantam financiamento, distribuição e políticas de longo prazo.
1. Fortalecer a Ancine e garantir previsibilidade no financiamento
A Agência Nacional do Cinema (Ancine) tem um papel fundamental no fomento ao setor, mas sua atuação foi enfraquecida nos últimos anos. Muitos projetos ficaram paralisados devido à burocracia e à falta de liberação de recursos do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA). Para que o cinema nacional avance, é essencial garantir que a Ancine funcione de maneira eficiente, com regras claras e processos ágeis para a liberação de verbas.
O Brasil precisa de um modelo de financiamento previsível, que permita aos produtores planejarem a longo prazo. Países como a França e o Canadá têm fundos de apoio ao cinema que operam de maneira contínua, sem depender exclusivamente de editais sazonais ou decisões políticas momentâneas. Essa estabilidade permite que cineastas desenvolvam suas obras com mais segurança, sabendo que há suporte institucional para suas produções.
2. Ampliar a distribuição e o acesso ao cinema nacional
Produzir bons filmes não basta se eles não chegarem ao público. A distribuição é um dos maiores desafios do cinema brasileiro. Muitas produções de qualidade ficam restritas a festivais ou a pequenas salas de cinema, sem alcançar grande audiência.
O governo pode atuar em duas frentes nesse aspecto. A primeira é incentivar redes de cinema a exibirem mais filmes nacionais, seja por meio de cotas ou de estímulos financeiros. A segunda é fortalecer os circuitos alternativos e os cinemas de rua, especialmente em cidades menores, onde muitas vezes não há oferta de filmes brasileiros.
Além disso, o streaming se tornou a principal janela de exibição para milhões de pessoas, e é essencial que plataformas como Netflix, Amazon Prime e Globoplay invistam mais no audiovisual nacional. Regulamentações como as adotadas na Europa, que exigem que um percentual do catálogo dessas empresas seja composto por produções locais, poderiam garantir maior visibilidade para o cinema brasileiro.
3. Incentivar coproduções internacionais e a presença em festivais
O cinema brasileiro já tem uma tradição de coproduções internacionais, e esse modelo pode ser ampliado para fortalecer nossa presença global. Países como Coreia do Sul e Argentina investiram nessa estratégia e conseguiram levar suas produções para um público muito maior. O Brasil pode firmar parcerias estratégicas para que seus filmes tenham maior alcance, não apenas no circuito de festivais, mas também no mercado comercial.
Além disso, a presença em grandes festivais internacionais, como Cannes, Berlim e Veneza, deve ser incentivada. Essas plataformas funcionam como vitrines para o cinema nacional e podem abrir portas para distribuição global. Programas de apoio a cineastas que participam desses eventos, oferecendo suporte financeiro e logístico, podem fazer a diferença na consolidação do Brasil como uma potência audiovisual.
4. Transformar o cinema em um motor de desenvolvimento econômico
O audiovisual não é apenas uma expressão cultural; é também uma indústria que gera empregos e movimenta a economia. O Brasil precisa tratar o cinema como um setor estratégico, capaz de impulsionar inovação, tecnologia e turismo.
Em países como os Estados Unidos, a indústria do entretenimento é uma das maiores fontes de renda. O governo brasileiro pode criar incentivos fiscais para empresas que investem no setor, estimular film commissions que facilitem a produção em diferentes regiões do país e incentivar a formação de profissionais qualificados para a indústria audiovisual.
Além disso, o turismo cinematográfico, que já é explorado em países como Nova Zelândia e Reino Unido, pode ser um caminho para o Brasil. Locais onde filmes e séries foram rodados podem atrair visitantes, movimentar a economia local e fortalecer a identidade cultural do país no exterior.
5. Educação e formação de novos talentos
Para que o cinema brasileiro continue evoluindo, é essencial investir na formação de novos cineastas, roteiristas, técnicos e atores. O ensino do audiovisual pode ser ampliado em escolas e universidades, criando oportunidades para que mais jovens tenham acesso ao conhecimento técnico e artístico necessário para ingressar na indústria.
O governo pode estimular parcerias entre instituições de ensino e produtoras, criando programas de residência artística e bolsas para estudantes de cinema. Além disso, festivais e laboratórios de desenvolvimento de projetos podem ser fortalecidos para ajudar novos talentos a se profissionalizarem.
Um telefonema não faz um cinema forte, mas uma política bem estruturada, sim
O telefonema de Lula para Walter Salles foi um gesto importante, mas a cultura exige muito mais do que reconhecimento simbólico. O Brasil tem uma indústria cinematográfica vibrante, criativa e com grande potencial de crescimento, mas para que ela realmente floresça, é necessário um compromisso real com políticas públicas sólidas e de longo prazo.
O Oscar de “Ainda Estou Aqui” mostra que o talento brasileiro é inquestionável. Agora, o desafio é garantir que esse talento tenha condições de se desenvolver continuamente, sem depender de esforços individuais e resistências heroicas. O cinema brasileiro já provou que pode conquistar o mundo. Cabe ao governo garantir que essa conquista não seja um episódio isolado, mas parte de um movimento contínuo de valorização e fortalecimento da nossa cultura.
Fabrício Correia é crítico de cinema, escritor e professor universitário. Foi diretor do Sindicato Nacional de Indústria Cinematográfica Brasileira na gestão de Dudu Continentino, fundador da Frente Parlamentar em Defesa da Indústria Audiovisual e é membro da Academia Brasileira de Cinema. É CEO da Kocmoc New Future, responsável pela agência de notícias “Conversa de Bastidores”.