Não se entra no Senado impunemente. Ou não se deveria. Há, ali, um peso que não é de mármore nem de bronze. É o peso da história. Um peso que cala, mesmo sem palavras, quem se dá conta de que está pisando na Casa Alta do Parlamento nacional — a instância mais longeva, mais grave, mais vigilante da democracia brasileira.
Foi nesse chão que discursou Ruy Barbosa, com sua retórica cortante como lâmina e limpa como a razão. Foi nesse púlpito que Teotônio Vilela ergueu sua voz contra a ditadura, quando as ruas estavam em silêncio e a censura rugia. Foi ali que Darcy Ribeiro enfrentou o riso dos cínicos para defender os povos indígenas, a educação pública, a cultura nacional. Cada cadeira, cada painel, cada ato ali registrado carrega mais do que nome: carrega uma memória. Uma responsabilidade.
O Senado, quando é verdadeiramente Senado, não se curva. Nem ao mercado, nem à opinião do dia, nem ao apetite dos governantes. Ele é, ou deveria ser, a consciência da República — a última trincheira quando tudo em volta parece ruir. E é por isso que o que se tenta fazer com ele hoje, à luz do dia e sob a sombra da ambição de um homem só, é não apenas um golpe de ocasião: é uma tragédia nacional.
Jair Bolsonaro, inelegível, acuado, derrotado juridicamente, tenta manter sua presença no poder não pelas vias institucionais, mas pela ocupação hereditária dos espaços de representação. E elegeu o Senado como seu novo bunker. Quer povoá-lo não com pensadores, nem com representantes legítimos, mas com filhos, com a esposa, com fantoches que carreguem o sobrenome como se isso bastasse.
Carlos Bolsonaro, vereador do Rio, sem qualquer ligação com Santa Catarina, foi anunciado como futuro senador por lá — como se mandatos fossem propriedade transmissível. Como se a cadeira mais importante do Parlamento federal fosse um móvel a ser redistribuído entre os cômodos da família. Uma deputada em exercício, Julia Zanatta, foi “avisada” de que deveria recuar. E aceitou. Porque no bolsonarismo, quem não se submete é expurgado.
Michelle Bolsonaro, por sua vez, ainda não teve o futuro político anunciado. Será mais. Querem lançá-la ao Senado. Talvez até à Presidência. Já ensaiam o discurso, já testam sua imagem, já elaboram a liturgia. Michelle é a candidata do ressentimento doce. A que sorri enquanto empunha a mesma ideologia de ódio. A que desfila com a Bíblia na mão e o projeto autoritário no bolso.
Mas o mais grave não é a ambição dessa família — é a passividade da República. Porque a tentativa de transformar o Senado num cofre dinástico não começou hoje. E se avança, é porque estamos deixando. Estamos nos acostumando com a ideia de que a política é um espelho doméstico, e não uma arena pública.
A cadeira de senador da República não é prêmio, não é feudo. Ela existe para conter excessos, para revisar o ímpeto das maiorias, para garantir que o país jamais se renda à pressa ou à ignorância. Foi o Senado que derrubou Fernando Collor. Foi o Senado que garantiu a transição após a Constituinte. Foi o Senado que disse não ao autoritarismo em momentos decisivos da nossa história.
E é por isso que dói ver o que tentam fazer dele agora: um camarim de dinastia. Um balcão de proteção familiar. Um abrigo para nomes que se recusam a se despedir.
Como historiador, é impossível não ouvir o eco de outras épocas sombrias. As repúblicas que caíram — Roma, Weimar, tantas outras — ruíram não porque os bárbaros chegaram, mas porque os senados se calaram. Porque deixaram que a mediocridade ocupasse o lugar da responsabilidade. Porque aceitaram que herdeiros entrassem pela porta da frente enquanto a história saía pelos fundos.
O Senado da República não pode ser reduzido a trampolim de filhos. A República não é uma casa de família. E se permitirmos que a Casa Alta se torne extensão de um projeto pessoal, estaremos traindo tudo o que ela já representou.
É preciso lembrar ao Brasil — e a nós mesmos — que aquele espaço é sagrado. Que não pertence a Jair, nem a Michelle, nem a Carlos, nem a Flávio, nem a nenhum sobrenome. Pertence à democracia. À nossa memória cívica. À ideia de que o poder, para ser legítimo, precisa ser maior que os indivíduos.
O Senado foi feito para resistir. Que resista agora. Porque, se ele cair, não haverá teto algum que nos proteja da barbárie.
Fabrício Correia é escritor, jornalista, historiador e professor universitário. É CEO da Kocmoc New Future, responsável pela agência de notícias “Conversa de Bastidores”