Como diria o outro Glauber — o cineasta, o visionário, o insuportável porque era livre — estamos vivendo, mais uma vez, uma “Terra em Transe”. Mas agora, o transe é outro. Não é mais Poetas do povo contra Generais. É pior. É a lenta domesticação da esperança. O que acontece com Glauber Braga na Câmara dos Deputados não é política. É a poesia de uma utópica liberdade sendo fuzilada. É a verdade levada ao cadafalso. É a cena final reencenada ao vivo, sem uma câmera na mão, mas com uma ideia fixa na cabeça; perpetuar a corrupção. O antagonista dos vilões de terno e gravata será retirado à força porque ousou não fazer parte do script dos donos do país.
Como em “Terra em Transe”, o herói não é herói. É figura trágica, lúcida demais para sobreviver, íntegra demais para ser útil. Glauber não caiu. Foi derrubado. E não por inimigos declarados, mas por colegas de plenário que sorriem, cumprimentam e apertam o botão da morte com os dedos sujos de cumplicidade.
Em “Terra em Transe”, Paulo Martins grita sua desesperança até a garganta sangrar. Glauber Braga, nos últimos anos, fez o mesmo. Mas seu grito não ecoou nas montanhas. Ecoou num plenário surdo. Denunciou o orçamento secreto. Expôs os feudos parlamentares. Acelerou investigações. Fez o Supremo se mexer. Desestabilizou os donos do cofre. Mexeu com Arthur Lira. Isso — isso — é o verdadeiro crime.
Cassam Glauber como se se tratasse de um distúrbio, um desvio. Mas Glauber é o espelho. E o que o sistema não suporta é ser refletido por inteiro. O que Brasília quer é um parlamento de avatares, domesticados, contábeis, úteis. Glauber não cabe. Ele quebra a moldura. Por isso será apagado — com regimento, com rito, com parecer. Mas sem decência.
E enquanto a farsa se desenrola, o país segue em transe. Um transe institucional, educado, protocolar. Ninguém invade. Ninguém vocifera. Ninguém impede. Todos assistem. Todos participam. Até os inocentes colaboram, repetindo que “agrediu”, que “exagerou”, que “precisa haver limites”. Mas o único excesso cometido por Glauber foi o de não fingir. E isso, na terra dos que fingem tudo, é imperdoável.
Arthur Lira é a encarnação do que se tornou a política institucional brasileira: uma engrenagem de lealdades compradas, silêncios remunerados e obediência premiada. Não se faz mais ditadura com fuzil. Faz-se com regimento. E Lira é seu general.
A nova ordem não precisa de tanques. Precisa de votos em plenário. Precisa de manchetes limpas e decisões sujas. Precisa de suplentes que não ameacem, de rituais que anestesiem. E a cassação de Glauber é um espetáculo completo: tem vilão oculto, mocinho desarmado, narrativa pronta e um público treinado a não reagir.
Mas a História não será gentil. Porque há registros. Há textos. Há olhos que não fecharão. E haverá, sim, um dia, quem reveja tudo e diga: foi ali que mataram um dos últimos políticos livres. Foi ali que o Brasil escolheu a ordem ao invés da coragem. Foi ali que o país decidiu continuar sendo feudo, apesar do nome de república.
Glauber, como Paulo Martins, será vencido. Mas deixará um rastro. Um incômodo. Um corpo político que, mesmo ausente, continuará pesando no plenário. Sua cassação será uma cicatriz na face da Câmara. Uma ferida que os que se calaram nunca mais conseguirão esconder.
E nós — nós que assistimos — seguiremos em transe, até acordar. Ou até sermos os próximos a sermos julgados por ter dito o óbvio.
Glauber, em greve de fome, estirado no plenário do Conselho de Ética, é o retrato do que fizeram com a democracia: cassaram-na com polidez, com fala mansa, com rito constitucional. E deixaram no ar a pergunta que nunca poderá ser respondida sem vergonha: quem será o próximo a ser expulso por dizer a verdade?
Fabrício Correia é escritor, crítico de cinema, jornalista, historiador e professor universitário. Presidiu a Academia Joseense de Letras e integra a União Brasileira de Escritores – UBE e a Academia Brasileira de Cinema. É CEO da Kocmoc New Future, responsável pela agência de notícias, “Conversa de Bastidores” e o portal de entretenimento “Viva Noite”. Apresenta o programa “Vale Night” na TH+ SBT.