No Brasil, a Justiça é cega, surda, muda — mas tem olfato apurado para o perfume dos poderosos e Alzheimer institucional. O mais novo capítulo do almanaque de absurdos nacionais veio na forma de um parecer jurídico com alma de flor de cemitério: o Procurador-Geral da República, Paulo Gonet, em parecer relâmpago, acha prudente que Fernando Collor de Mello, condenado por corrupção e lavagem de dinheiro, durma em casa.
Sim, senhoras e senhores: casa. Com cirola, cobertor e controle remoto do ar condicionado.
Porque, afinal, Collor tem Parkinson, apneia do sono, transtorno afetivo bipolar — e, é claro, um talento raro para permanecer rico e ileso depois de décadas de escândalos.
Gonet, cuja função constitucional é representar o interesse público, fez isso com esmero: representou o interesse de que o público não se lembre de nada.
Seu parecer é quase um poema sobre a generosidade seletiva da Justiça brasileira.
Uma ode à compaixão dos palácios, nunca das periferias.
É bonito ver a preocupação com a saúde de um homem que adoeceu gravemente logo após ser preso. Porque em liberdade, misteriosamente, Collor era um monumento à vitalidade: discursava, articulava, pilotava carros importados — um Nietzsche das Alagoas. Mas na prisão, virou súbito personagem de história triste: o idoso frágil, incompreendido, e, sobretudo, injustiçado por ter sido finalmente punido.
Gonet não é um vilão. É um produto do país. Um burocrata de toga que entendeu perfeitamente a partitura. Sabe que no Brasil prisão é substantivo masculino, mas aplicação é artigo indefinido: depende da sensibilidade. E que para alguns, a cela é inevitável; para outros, é indevida. Para uns, prisão; para outros, prescrição.
Se Millôr estivesse aqui, abriria o jornal, leria a nota da PGR e escreveria com aquela pena envenenada:
“No Brasil, até a pena é suspensa — desde que o condenado tenha biografia, comorbidade ou bons advogados.”
E pensar que o parecer veio no mesmo dia em que a CBF debatia se a Seleção deveria vestir vermelho. Preocupações da pátria de chuteiras: enquanto discutimos a camisa, os donos do armário voltam para casa — de banho tomado e tornozeleira perfumada.
Fernando Collor, aquele mesmo, que renunciou à presidência para não ser cassado, e foi; condenado agora por embolsar R$ 20 milhões em vantagens indevidas, está prestes a voltar ao lar, doce lar.
É claro que tudo foi “de acordo com o estatuto, com laudo médico, com bom senso”. Sim, o bom senso — essa entidade etérea que no Brasil só aparece para servir os que nunca serviram ninguém.
E assim seguimos.
Com um Procurador que parece ter confundido Código Penal com manual de etiqueta.
Com um país onde justiça é promessa e impunidade é tradição.
E com uma República que nunca se cansa de surpreender — sempre para trás.
Collor vai para casa.
O povo?
Fica preso. No engarrafamento, na fila do SUS, na dúvida se rir ou chorar.
Porque aqui, no fundo, tudo é permitido.
Só não vale perder a pose.
Fabrício Correia: historiador por formação, cronista por indignação e apresentador de televisão por acidente. Sobrevive de palavras, ironia e algumas boas histórias mal contadas.