Foto: Reprodução

Jean-Claude Bernardet: o intelectual que nos ensinou a olhar

Jean-Claude Bernardet morreu hoje. Mas dizer isso — apenas isso — seria uma brutalidade contra o tempo e contra tudo o que ele representou. Jean-Claude não foi um crítico, um professor ou um cineasta apenas: foi uma consciência crítica em permanente estado de ebulição, um corpo sensível à injustiça e uma inteligência cultivada no mais alto grau de refinamento ético e estético.

Como alguém que o leu, o ouviu, o acompanhou — e teve o privilégio de trazê-lo para o Vale do Paraíba em um momento em que sonhávamos com um centro de formação audiovisual numa região ainda órfã de estruturas públicas para o cinema — sinto a morte de Bernardet como um silêncio súbito e irreparável na história da cultura brasileira. Mas não um fim.

Ele veio antes de todas as comissões, antes dos editais, antes do que hoje chamamos de políticas públicas para o audiovisual. Ele veio com livros, ideias e perguntas. E foi abrindo clareiras de pensamento onde só havia mata fechada. Em mim, Bernardet plantou uma convicção: a crítica não é um adorno da arte, mas uma de suas lâminas mais exigentes. E o cinema, no Brasil, só se manteria vivo se também soubesse pensar a si mesmo.

Na época em que o convidei para vir ao Vale, muitos acharam um delírio. Que faria aquele senhor, com seu francês ainda levemente perceptível, entre câmeras de fita MiniDV e roteiros estudantis incipientes? Ele fez o que sempre fez: ouviu, estimulou, provocou. Bernardet não era generoso no sentido fácil. Era generoso no sentido nobre — aquele que exige, desafia, acredita. Deixou os jovens com fome de cinema, de leitura, de mundo. E saiu silencioso, como quem sabia que o trabalho estava feito. Estava mesmo.

Ele foi o primeiro a dizer que fazer cinema no Brasil é um ato político. Não pelo proselitismo — que ele desprezava — mas porque o cinema, quando verdadeiro, fere o poder. E Jean-Claude sabia que o Brasil é um país que esconde seus ferimentos. Então escreveu “Brasil em Tempo de Cinema”, “Cineastas e Imagens do Povo”, “O Autor no Cinema”, e tantos outros livros que já deveriam estar nas estantes de todas as escolas.

Ele foi o intelectual que nunca se dobrou ao conforto da academia e que, no entanto, a transformou por dentro. Professor emérito da USP, sim — mas também um andarilho do pensamento, sempre disposto a ir onde fosse necessário para formar, provocar e transformar.

Sua morte em São Paulo, no Hospital Samaritano, encerra um ciclo. Mas não encerra a influência. O Arquivo Jean-Claude Bernardet, guardado na Cinemateca Brasileira, é apenas um símbolo material de sua imortalidade. O que permanece mesmo é o impulso que ele nos deu para pensar o Brasil com radicalidade. Para amar o cinema com responsabilidade. Para fazer crítica como quem faz altar.

Nunca esquecerei aquele final de tarde, enquanto tomávamos um café no espaço gerenciado pelo Sato na FCCR, em que ele me disse:

“O crítico que ama demais o cinema pode acabar perdoando o que não deveria. O crítico que ama o país, nunca.”

Bernardet amou este país até onde o Brasil permitiu ser amado. E pagou o preço por isso, muitas vezes com a incompreensão, com o exílio, com o desprezo de quem prefere o entretenimento à consciência. Mas ele nunca recuou.

Hoje, ao saber de sua partida, senti que perdemos um pedaço da inteligência brasileira. Mas também soube que é hora de devolver algo do muito que recebemos.

Jean-Claude Bernardet, obrigado.

Por ensinar, por resistir, por filmar, por sonhar — antes de todos nós.

Fabrício Correia é escritor, jornalista, crítico de cinema e professor universitário. Foi assessor de Gestão e Estratégia na Fundação Cultural Cassiano Ricardo. Membro da Academia Brasileira de Cinema

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