Não é todo dia que um magistrado transforma o ato burocrático de aposentar-se em um gesto simbólico de rara dimensão ética. Luís Roberto Barroso, ao votar pela descriminalização do aborto até a décima segunda semana de gestação em sua derradeira intervenção no Supremo Tribunal Federal, não apenas marcou sua despedida da toga, mas inscreveu uma página de síntese entre pensamento jurídico e sensibilidade histórica. Seu voto final é um um testamento; a tradução de uma vida pública guiada pela convicção de que a Constituição é um organismo moral em permanente expansão, e de que o papel do juiz é fazê-la respirar o ar do tempo, mesmo quando o país ainda aspira o pó do atraso.
Ao longo de sua trajetória, Barroso construiu uma identidade singular dentro da Corte. Seu percurso foi o de um jurista que sempre acreditou que o Direito deve ser mais do que o artifício de contenção das paixões sociais; deve ser, antes, o instrumento de aperfeiçoamento da vida comum. Sob sua pena, a Constituição foi lida não como um corpo fixo de normas, mas como um espaço de possibilidades morais, onde o humano precede o legal e a dignidade precede o texto. Barroso representa, nesse sentido, a linhagem dos intérpretes que entendem a lei como um meio de civilização, não de conservação.
Sua decisão de encerrar a passagem pelo Supremo com a pauta do aborto, portanto, não é fortuita. É o desfecho de um raciocínio que atravessa sua obra inteira: o reconhecimento de que a liberdade não é plena enquanto o corpo da mulher continuar subordinado à tutela moral do Estado. Ao se posicionar a favor da descriminalização, Barroso manteve a coerência de um itinerário que o levou a defender a união homoafetiva, a liberdade religiosa, a autonomia médica e o direito de morrer com dignidade. Em todos esses momentos, sustentou a mesma ideia: a de que a Constituição deve servir para ampliar horizontes e não para reforçar fronteiras.
Há, em seu gesto final, uma lucidez estratégica. O ministro percebeu que sua cadeira, prestes a ser ocupada por alguém de perfil mais conservador, poderia representar o refluxo de conquistas recentes. Antecipar o voto foi uma maneira de inscrever sua posição nos anais da história antes que a correlação de forças políticas e religiosas alterasse o rumo da jurisprudência. Ao fazê-lo, Barroso não agiu em busca de protagonismo, mas de registro. Quis garantir que, quando a história futura revisitar o tema, conste ali o testemunho de que um juiz, às vésperas de sua saída, preferiu a coragem ao cálculo e a consciência à conveniência.
O debate sobre o aborto, no Brasil, é menos jurídico do que moral e menos moral do que social. Trata-se, em verdade, de uma questão de desigualdade. A criminalização não impede a prática; apenas decide quem sobreviverá a ela. As mulheres com recursos financeiros interrompem suas gestações em clínicas discretas, protegidas pela técnica e pelo silêncio. As mulheres pobres, por outro lado, enfrentam o risco, o estigma e a morte. Nesse sentido, o voto de Barroso não é apenas um manifesto liberal, mas uma denúncia estrutural: o país que se orgulha de ser cristão convive, sem remorso, com a punição seletiva das mulheres que a miséria empurra para o desespero.
Sob uma perspectiva mais ampla, o gesto de Barroso revela a tensão permanente entre a lentidão das instituições e a urgência dos direitos. Ao longo de sua trajetória, ele sempre defendeu que o Supremo deveria ocupar o papel de guardião da modernidade em uma sociedade que insiste em reviver seus medos coloniais. Em temas como a liberdade de imprensa, a proteção das minorias e a laicidade do Estado, Barroso foi a voz de um constitucionalismo pedagógico, voltado a educar o país para a democracia. Sua oratória, muitas vezes didática, escondia uma intuição mais profunda: a de que o progresso moral não nasce das leis, mas das consciências que as interpretam.
Encerrar a carreira com um voto sobre o aborto é, por tudo isso, um gesto de coerência e de despedida. Coerência, porque se alinha ao fio que orientou toda a sua atuação. Despedida, porque admite o limite do próprio poder de transformar. Ao votar, Barroso sabe que a sociedade talvez não esteja pronta, que a política talvez recue, que o debate talvez se degrade. Mas sabe também que o tempo é paciente com quem semeia. Sua última intervenção é, assim, menos uma tentativa de resolver um dilema jurídico do que um convite para que o país comece, enfim, a pensar-se a si mesmo sem medo da liberdade.
A história do Supremo Tribunal Federal é, em grande medida, a história de um país que tenta se civilizar pela letra. Poucos ministros compreenderam isso com a densidade de Barroso. Sua saída não é apenas o fim de um ciclo institucional, mas a suspensão de uma voz que, ao longo de anos, insistiu que o Direito não existe para proteger o poder, e sim para conter a barbárie. Quando se lê seu último voto, é possível perceber uma tonalidade de cansaço e de esperança misturadas, como se o ministro soubesse que as ideias, ao contrário dos cargos, não se aposentam.
Talvez o tempo confirme o que sua escrita já prenuncia: que esse voto será lembrado não como o ato final de um juiz, mas como o primeiro gesto de um país que, entre contradições e recuos, começará um dia a reconhecer que o corpo de uma mulher é também território da Constituição.
Fabrício Correia é escritor, jornalista e professor universitário. Foi coordenador da Cátedra de Diversidade da UNISE/PR e presidente municipal do Partido Verde e um dos fundadores da Rede Sustentabilidade em São José dos Campos. Presidiu o Fundo Social de Solidariedade e a Academia Joseense de Letras. Integra a União Brasileira dos Escritores.