Começo com um abraço demorado e afetuoso em Milly Lacombe, mulher, lésbica, jornalista, roteirista e feminista, símbolo recente de um gesto que não deveria ter lugar numa festa literária: o veto. A FLIM, Festa Literária e Musical de São José dos Campos, nasceu para ser palco de encontros, espaço de diversidade, celebração da palavra e da música. Quando uma voz é silenciada, não é apenas a autora que se vê atingida: é a própria essência da festa que se fragiliza.
A história da literatura nos ensina que livros não existem para confirmar certezas, mas para abrir fendas, provocar, deslocar. Uma feira que se pretenda literária e musical precisa ser plural, porque a arte só respira em meio ao contraste. O perigo está em normalizar o gesto de exclusão: hoje é um nome desconvidado, amanhã pode ser uma mesa, depois um livro inteiro. E quando damos conta, o espaço que era de convivência se torna apenas vitrine de controle.
É justamente por isso que a FLIM não deve ser boicotada. A festa não pertence a quem veta, mas à cidade, aos leitores, aos escritores, aos estudantes, aos músicos, aos que nela encontram sentido. Ausentar-se seria entregar de bandeja o vazio que a censura deseja. Resistir é comparecer. É ocupar as cadeiras, ouvir os debates, aplaudir os músicos, fazer da presença um ato de afirmação cultural.
Não podemos confundir: a FLIM é maior do que a sombra que hoje tenta se imputar sobre ela. É fruto de anos de construção, do trabalho de curadores, de artistas e de uma comunidade que se reconhece na literatura e na música. É patrimônio simbólico de São José dos Campos, um dos raros momentos em que a cidade se volta para a reflexão, para a arte, para o diálogo.
Quem estamos nos tornando e quem não podemos nos tornar? A resposta depende do que fazemos agora. Podemos ser a sociedade que se curva diante da mordaça, ou a que responde com leitura, música, debate e presença. A censura busca esvaziar; a resistência se constrói no contrário, na ocupação plena dos espaços.
Que a FLIM deste ano não seja lembrada pela indelicadeza de desconvidar uma pensadora, mas pela intensidade das vozes que resistem todos os dias. Que permaneça o palco onde a literatura reafirma sua vocação de liberdade. Viva a FLIM! Viva a literatura!
Fabrício Correia é escritor, jornalista, professor universitário e ativista pelos direitos humanos. Especialista em Acessibilidade, Diversidade e Inclusão, presidiu a Academia Joseense de Letras e integra a União Brasileira de Escritores.