Foto: Ricardo Stuckert

O SBT e a antiinstitucionalidade bolsonarista

A visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à sede do SBT, por ocasião do lançamento do SBT News, foi tratada por setores do bolsonarismo como um ato de traição imperdoável do clã Abravanel. Não se trata, porém, de um episódio isolado nem de um mero surto de intolerância digital. O que se revela é foi algo mais profundo, histórico e estrutural: o bolsonarismo como um movimento de demolição sistemática das instituições, da mediação política e da própria ideia de normalidade democrática.

Desde sua gênese, o bolsonarismo não se organizou como um projeto de governo, mas como uma força de negação. Sua lógica não é construtiva; é corrosiva. Ele não busca disputar hegemonia dentro das regras do jogo institucional, mas desacreditá-las, tensioná-las até o colapso e substituí-las por uma fidelidade personalista, quase religiosa, a um líder e a uma narrativa de guerra permanente.

Nesse sentido, a reação à presença de Lula no SBT é exemplar. A emissora, fundada por Silvio Santos, sempre operou dentro de uma tradição tipicamente brasileira: pragmática, ambígua, empresarial. O SBT nunca foi um partido político, nem mesmo quando seus interesses coincidiram, em momentos específicos, com governos de diferentes matizes ideológicas. A televisão brasileira, historicamente, sobreviveu da capacidade de negociar com o poder, qualquer poder, preservando sua operação, sua concessão e sua relevância econômica.

O bolsonarismo rompe com essa tradição ao exigir pureza ideológica absoluta. Para ele, não há distinção entre empresa e militância, não quer saber; toda instituição precisa ser trincheira. O Estado torna-se uma facção. Tudo deve ser subordinado à causa. A presença de Fábio Faria na estrutura do SBT, longe de ser um sinal de pluralidade ou equilíbrio, é interpretada pela militância como um selo de propriedade: se Faria é “dos nossos”, então o SBT deveria agir como extensão do bolsonarismo. Ao não fazê-lo, a emissora é imediatamente acusada de traição, rendição ou “venda”.

Essa lógica não é nova na história. Movimentos de caráter autoritário sempre operaram pela demolição das zonas cinzentas. O fascismo histórico, em suas diversas versões, tinha horror à ambiguidade, ao compromisso, à convivência entre opostos. Tudo precisava ser claro, binário, absoluto. Amigo ou inimigo. Leal ou traidor. O bolsonarismo herda essa matriz, adaptada ao ecossistema digital, onde o linchamento simbólico substitui o debate e o cancelamento funciona como mecanismo de controle social.

O ataque ao SBT não é, portanto, um episódio isolado de fúria online. Ele se insere em uma longa sequência de tentativas de deslegitimar qualquer instituição que não se submeta integralmente ao movimento: Congresso, Supremo Tribunal Federal, universidades, imprensa, sistema eleitoral e emissoras de televisão, que ousam manter relações institucionais com um governo eleito.

A ausência de Silvio Santos da cena pública apenas evidencia essa fragilidade. Seu carisma e sua autoridade simbólica funcionavam como um amortecedor histórico, capaz de justificar o pragmatismo sem maiores explicações. Sem essa figura tutelar, o SBT passa a ser tratado como qualquer outra instituição: pressionado a escolher lados, coagido a abandonar a lógica empresarial em nome de uma guerra ideológica que não é sua.

O que se vê, no fundo, é o desconforto profundo do bolsonarismo diante da restauração da normalidade institucional. A presença de Lula em uma emissora privada, o diálogo entre governo e mídia, o funcionamento regular das engrenagens do Estado, tudo isso representa, para esse movimento, uma ameaça existencial. A normalidade é intolerável porque desmonta a narrativa do caos permanente que alimenta sua base.

Historicamente, forças políticas de demolição prosperam apenas enquanto conseguem manter o ambiente em ruínas. Elas não sabem governar a estabilidade, nem conviver com a institucionalidade. Por isso atacam empresas, jornalistas, artistas, emissoras e qualquer ator que se recuse a viver em estado de guerra contínua.

O episódio do SBT é, assim, revelador. Mostra que, apesar do barulho ensurdecedor das redes, o bolsonarismo esbarra em um limite histórico: instituições sobrevivem porque negociam, adaptam-se e preservam seus interesses materiais. A televisão, goste-se ou não, continua sendo um negócio regulado, dependente de concessões, publicidade e diálogo com o Estado. O grito do cancelamento pode ecoar alto, mas, ao longo da história, movimentos de demolição sempre fracassaram diante da persistência silenciosa das estruturas que sustentam a vida social.

O bolsonarismo não cancela o SBT. Ele apenas reafirma, mais uma vez, sua vocação destrutiva e sua incapacidade de existir fora da lógica do confronto absoluto.

Fabrício Correia é escritor, jornalista, historiador e professor universitário. Integra a União Brasileira de Escritores e a Academia Brasileira de Cinema.

WhatsApp
Facebook
Twitter