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PSOL: Quando a esquerda defende o cofre

Vivemos tempos curiosos na política brasileira. Tempos em que a coerência ideológica parece se dissolver na fumaça espessa do pragmatismo fiscal. O Partido Socialismo e Liberdade, o PSOL — legenda historicamente alinhada à crítica feroz ao sistema tributário regressivo brasileiro e à defesa dos mais vulneráveis — decidiu, nesta sexta-feira, bater às portas do Supremo Tribunal Federal. E para quê? Para defender… um aumento de imposto.

Sim, é isso mesmo. O PSOL entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) para tentar reverter a decisão do Congresso Nacional que sustou o decreto do presidente Lula sobre o aumento do IOF (Imposto sobre Operações Financeiras). O motivo alegado: a ausência de exorbitância do poder regulamentar do Executivo. Em bom português: o governo poderia sim aumentar o imposto por decreto — e o Congresso extrapolou ao derrubá-lo. Mas a pergunta que não quer calar é: desde quando o PSOL se tornou o fiador jurídico da Fazenda Nacional?

A ironia é tão aguda que poderia cortar as engrenagens da burocracia de Brasília. O partido que historicamente denunciou o uso abusivo de impostos indiretos, que penalizam sobretudo os mais pobres — como é o caso do IOF —, agora se vê na trincheira inversa, protegendo a própria existência do tributo, ainda que por razões técnicas e constitucionais. No centro desse malabarismo está a fidelidade à base de governo, e, acima dela, a obsessão do ministro Fernando Haddad por cumprir as metas do novo arcabouço fiscal. Metas, diga-se, que têm o apoio discreto, mas firme, do mercado financeiro.

O mundo virou mesmo de cabeça para baixo? Ou será apenas mais um episódio do velho realismo político que costuma se impor às doutrinas quando o poder bate à porta?

Ninguém duvida da boa intenção do PSOL ao tentar garantir financiamento para políticas públicas. Mas há aqui um problema de forma e substância. De forma, porque o partido se coloca na posição jurídica de guardião de uma lógica fiscal que, no fundo, sempre criticou. De substância, porque o IOF é tudo, menos um imposto socialmente justo: afeta quem pega empréstimo, quem faz seguro, quem troca moedas — ou seja, trabalhadores comuns, microempreendedores, estudantes e turistas populares.

É legítimo buscar equilíbrio fiscal, claro. É compreensível defender o governo do qual se é base. Mas é imperdoável abrir mão da coerência. A crítica não é ao direito do Executivo de tributar — é à escolha do imposto, à forma do aumento e à inversão das prioridades. Tributar operações financeiras é diferente de taxar grandes fortunas ou lucros e dividendos. E não custa lembrar: até ontem, o PSOL ecoava nos corredores do Congresso a urgência de uma reforma tributária progressiva. O que houve?

Estamos diante de um dilema que afeta não só o PSOL, mas boa parte da esquerda institucional: o conflito entre o idealismo da oposição e o pragmatismo do governo. É fácil ser radical quando se está na margem. O desafio é manter o espírito crítico quando se entra no centro do poder. E o centro, como sabemos, tende a absorver, diluir, acomodar.

Se há algo a aprender com esse episódio, é que a política brasileira está órfã de uma esquerda capaz de unir justiça fiscal, responsabilidade orçamentária e coerência ideológica. Uma esquerda que não se torne apenas um espelho invertido da direita: obcecada por cumprir metas, ainda que o preço seja trair princípios.

O PSOL pediu imposto. O mundo não acabou. Mas talvez tenha se tornado um lugar um pouco mais confuso.

Fabrício Correia é escritor, jornalista e professor universitário. É CEO da Kocmoc New Future, responsável pela agência de notícias “Conversa de Bastidores”

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