Demorei para escrever. Não por falta de palavras — mas por não saber com que corpo entrar nesse assunto. Há notícias que exigem silêncio antes da primeira linha. Esta não é apenas uma delas. Esta é a própria linha. Desde que soube do menino de 14 anos que matou o pai, a mãe e o irmão pequeno, em Itaperuna, venho arrastando uma pergunta que não se cala: não é “como ele fez isso”, mas o que deixamos de ver antes que isso acontecesse. Um garoto descrito como doce, educado, bom aluno. Um filho tido como “tranquilo”. Mas de que serve a tranquilidade, se por dentro há um grito que ninguém ouve? Quantas infâncias estão sendo elogiadas pelo silêncio — quando na verdade estão sufocadas por não saberem onde colocar o que sentem? Ele queria viajar para encontrar uma menina que conheceu em um jogo online. Ao ser impedido, matou. Isso não é sobre romance adolescente. Isso é sobre o esvaziamento afetivo de uma geração inteira. Uma geração que, ao ser privada de escuta, confunde limite com agressão. Que, sem espelho emocional, transforma desejo em explosão. A menina assistiu aos assassinatos em tempo real. Acompanhou cada morte como se visse uma série. Sem grito. Sem horror. Sem reação. Não foi cúmplice por omissão. Foi moldada, como ele, pela mesma falência da realidade. Estamos criando adolescentes que conhecem todas as ferramentas, mas não sabem nomear uma angústia. Sabem manipular imagens, mas não suportam o próprio afeto. Sabem falar com o mundo inteiro, menos com os pais. Não, esse menino não nasceu cruel. Ninguém nasce. Ele foi bebê, foi criança, foi abraço. Mas, em algum ponto, deixou de ser visto. Deixou de ser escutado. E quando não há mais linguagem, a violência ocupa. Não para ser compreendida. Mas para ser notada. As redes sociais não são culpadas, mas são cúmplices do silêncio. Amplificam o ruído e borram o real. Vivemos tão conectados que esquecemos de tocar. Tão estimulados que não sabemos mais sustentar o que é lento, confuso, humano. E essa geração, a dos 13, 14, 15, 16 anos, está afundando diante de todos nós — sem que ninguém perceba. Ou pior: fingindo que não vê. A imprensa tem uma escolha. Pode tratar essa tragédia como produto de audiência. Ou pode se colocar à altura do que a vida exige. Pode usar a manchete como vitrine ou como convite. Pode perguntar com pressa ou pode perguntar com dor. O menino que matou a família não agiu sozinho. Foi o fim de um acúmulo de silêncios. De afetos não ditos. De ausências justificadas por rotinas. De vínculos frágeis. De lares que já não abrigam, escolas que já não escutam, adultos que já não sustentam. Não é sobre desculpar. Mas sobre impedir que aconteça de novo. E isso não se faz com ódio. Se faz com política pública, com presença, com escuta. Quando uma criança mata, morre o que acreditávamos estar garantido. Morre a fantasia de que dar amor é suficiente. Morre a fé de que basta não faltar nada. Morre, talvez, o que ainda havia de intacto na nossa esperança na infância. Mas se ainda escrevemos, se ainda conseguimos nos comover, se ainda trememos diante da pergunta — então algo segue vivo. E talvez, com coragem e afeto, possamos recomeçar onde tudo parecia ter ruído: na delicadeza do encontro, no vínculo verdadeiro, na escuta que não desiste, no cuidado que se recusa a chegar tarde demais.
Fabrício Correia é escritor, jornalista, professor universitário e terapeuta integrativo com especialização em Musicoterapia e Vibroacustica.