O que era para ser apenas um lanche comum — um bolo de cenoura sem glúten, preparado com afeto por uma mãe para a filha com doença celíaca — tornou-se, em poucos dias, um símbolo involuntário de uma era marcada por hiperexposição, incompreensão das diferenças e distorções sobre o que realmente significa inclusão. O caso aconteceu em Araucária, no Paraná, mas o debate ultrapassou os limites da escola e viralizou nas redes sociais, transformando-se numa narrativa nacional. E, como toda fábula moderna, repleta de julgamentos rasos, frases soltas, indignações automáticas e a ausência de escuta real.
Uma criança celíaca — ou seja, com uma condição autoimune que a impede de ingerir qualquer traço de glúten — levou de casa um bolo seguro, feito especialmente para ela. Um colega ficou com vontade. Sua mãe, em vez de compreender ou dialogar, partiu para o confronto, exigindo da escola explicações, gerando constrangimento, e colaborando para que a situação ganhasse contornos de escândalo. A mãe que cuidou da filha passou a ser interrogada publicamente, a instituição ficou acuada, e a menina celíaca, que precisava de acolhimento, virou personagem secundária no próprio drama.
O que nos levou até aqui?
Vivemos a era das redes sociais, onde tudo é exposto, capturado e editado em nome da reação. O escândalo vale mais que a escuta. A frustração virou bandeira, e a empatia, moeda de troca — desde que não exija real esforço. A escola, em Araucária, viu-se no epicentro de um debate inflamado, mas necessário: como garantir o direito dos diferentes sem que isso gere punição aos que tentam incluir? Como educar crianças para a diversidade sem transformá-las em pequenas autoridades do próprio desejo?
Doença celíaca não é tendência. É uma condição crônica, invisível, séria, que exige vigilância constante. Crianças com essa condição não podem comer bolos comuns, não podem aceitar o lanche do colega, não podem se expor ao risco da contaminação cruzada. Mas podem — e devem — conviver. A mãe dessa criança fez o que qualquer mãe atenta faria: preparou algo com segurança e afeto. A outra mãe, ao ver o filho frustrado por não ter comido o mesmo bolo, deveria ter aproveitado o episódio como lição de empatia. Mas não. Em vez de educar o filho sobre o valor do cuidado alheio, escolheu o confronto. E pior: acionou a instituição.
A escola, acuada, perdeu a chance de ser mediadora da paz. E o que poderia ser um episódio formativo virou disputa. E é aqui que precisamos propor uma nova visão.
Educar para a diversidade é, antes de tudo, construir um repertório emocional coletivo que compreenda a existência da diferença sem gerar retaliação. Não é apagar a dor de um para evitar a de outro. É ensinar que a dor, quando acolhida com escuta, pode ser compartilhada sem se tornar arma. Que a frustração não precisa ser evitada a qualquer custo — ela pode ser canalizada como lição.
Estamos criando uma geração pouco preparada para lidar com a ausência, com o limite, com a especificidade. Crianças que, diante da diferença, em vez de acolherem, acusam. A escola de Araucária não é a única. Ela representa tantas outras instituições pressionadas por pais que não aceitam ver seus filhos fora do centro, nem por um instante. E representa também a urgência de se repensar políticas públicas educacionais que capacitem gestores, pedagogos e professores a lidarem com casos como esse com firmeza, ética e humanidade.
Este episódio nos convoca a repensar os papéis:
— Das famílias, que devem educar para o outro, não apenas para o sucesso individual.
— Da escola, que precisa ser formadora de subjetividades coletivas, não apenas transmissora de conteúdo.
— Da sociedade, que precisa abandonar o tribunal digital e abraçar a complexidade das narrativas humanas.
Não há inclusão possível se ela parte da eliminação da autonomia. A menina celíaca tem direito à segurança e à dignidade. E o mais importante: ela não pediu que ninguém abrisse mão de nada, apenas precisa ser respeitada em sua condição. O que ela recebeu em troca foi julgamento, burocracia, exposição.
Que esse bolo de cenoura sirva como alerta. Para que possamos, como sociedade, sair do automático da reação e entrar na escuta ativa. Para que crianças sejam preparadas para o mundo real, onde há diferenças, sim — e elas não são obstáculos, mas convites à expansão da consciência.
A escola deve ensinar que o mundo não é homogêneo, nem justo o tempo todo, mas pode ser gentil, desde que a gentileza não se confunda com passividade. E que, às vezes, o bolo que não se pode comer alimenta a empatia com o outro.
Porque viver em é aprender a compartilhar o que o outro precisa para continuar vivo.
Fabrício Correia é escritor, crítico de cinema, jornalista, historiador e professor universitário. Presidiu a Academia Joseense de Letras e integra a União Brasileira de Escritores – UBE e a Academia Brasileira de Cinema. É CEO da Kocmoc New Future, responsável pela agência de notícias, “Conversa de Bastidores” e o portal de entretenimento “Viva Noite”. Apresenta o programa “Vale Night” na TH+ SBT.