Em 1994, o Brasil assistiu a uma das mais cruéis distorções da verdade já vistas no noticiário nacional. O caso da Escola Base, em São Paulo, destruiu reputações, encerrou vidas, alimentou manchetes, mas jamais entregou justiça. Pais foram acusados injustamente de abuso sexual contra crianças, com base em ilações frágeis, depoimentos mal conduzidos e o apetite insaciável de uma mídia que preferiu o escândalo à apuração. A tragédia maior não foi o erro — foi a pressa. O julgamento sem provas. O linchamento sem retorno. Trinta anos depois, os fantasmas daquele episódio voltam a circular, com novos rostos, novas redes, mas com a mesma lógica perversa.
Hoje, em São José dos Campos, um vereador decidiu cruzar essa linha.
Ao transformar uma situação escolar delicada, que exige cuidado técnico e silêncio institucional, em palanque político, Thomaz Henrique não apenas compromete o direito das crianças ao sigilo e à proteção. Ele instaura cruelmente um tribunal paralelo, onde a verdade não importa e a pedagogia é ignorada. Diante da complexidade de comportamentos infantis — que pedem escuta especializada, tempo e múltiplas leituras — ele induz a frase pronta, o vídeo editado, a performance agressiva. Em vez de somar ao esforço coletivo de cuidado, escolhe atacar. E ao fazer isso, mina a confiança nas instituições e reabre feridas históricas.
Não podemos normalizar esse tipo de atuação. Há um motivo para que o Estatuto da Criança e do Adolescente seja detalhado, protetivo, exigente. A infância, por definição, requer ambientes seguros. Toda denúncia envolvendo crianças deve ser acolhida com seriedade, e processada com rigor técnico. Psicólogos, assistentes sociais, gestores escolares, conselhos tutelares: cada peça dessa rede existe porque a pressa é inimiga da justiça. E no caso de crianças, a pressa é violência.
Ao mencionar episódios ocorridos dentro do CEDIN Flávio Lenzi como se fossem verdades consumadas, e ao fazê-lo sem apresentar investigações conclusivas, sem ouvir os profissionais diretamente envolvidos, sem respeitar o fluxo mínimo de um processo ético, o vereador age com brutalidade. A construção pública de uma narrativa unilateral que joga profissionais sob suspeita, expõe famílias, e transforma alunos em personagens, repete a tragédia da Escola Base com novas ferramentas. A lógica é a mesma. E oramos para o dano, não seja também.
A retórica utilizada — certeira, emocional, manipulável — confere à atuação do edil “vingador”uma aparência de coragem. Mas não há bravura onde falta responsabilidade. Um agente público que atua com seriedade entende que há limites que não podem ser ultrapassados. Que o sigilo é uma proteção, não uma omissão. Que a ausência de espetáculo é, muitas vezes, a presença da ética. Thomaz não demonstra essa compreensão. Sua escolha sempre é pela amplificação do medo, pela conversão da dor em slogan, pela exposição de um sistema que, silenciosamente, tentava cuidar.
A política, em seu sentido mais elevado, exige discernimento. A criança que apresenta comportamentos de possível conotação sexual na escola pode estar sinalizando algo muito maior — algo que precisa ser escutado com técnica, acolhido com humanidade e investigado com inteligência. O vereador não tem nem o preparo, nem a humildade para reconhecer isso. Sua ação precipitada criou mais ruído do que proteção. Mais trauma do que solução.
Não estamos diante de uma disputa partidária. Não se trata de defender uma gestão, uma escola ou um grupo. Trata-se de proteger a própria ideia de infância. Porque se crianças podem ser usadas como instrumento de chantagem pública, se episódios escolares complexos podem ser expostos à revelia de investigações, se redes de cuidado podem ser difamadas sem consequência, então não há mais civilidade possível. E não há futuro.
A atuação de Thomaz representa um ponto de ruptura. A partir dela, qualquer educador pode ser atacado. Qualquer aluno pode virar manchete. Qualquer pai pode ser acusado. A segurança institucional desaba quando a política passa a operar com a lógica da fogueira.
A pedagogia verdadeira não tem pressa. A proteção real não se faz com bravatas. A defesa da infância exige uma compostura que Thomaz demonstra não ter. Ao invés de contribuir para a construção de uma cidade mais justa, ele opta por alimentar a suspeita, tensionar vínculos e aprofundar o medo. A cidade merece mais. A infância exige mais.
O caso do CEDIN Flávio Lenzi entrará para os registros não pela falha da instituição, mas pela violência simbólica de quem deveria estar à serviço dela. Como na Escola Base, o que faltou foi escuta. E o que sobrou, foi vaidade.
Se São José dos Campos não tomar esse episódio como marco de reflexão, ele se repetirá. Porque a espetacularização da dor é sempre tentadora para quem tem pouco a oferecer além da própria vaidade. Mas quem vive a educação pública sabe: a grandeza não está na acusação. Está no silêncio que cuida. No gesto que acolhe. No saber que espera.
Nota final: A história se lembra de quem destrói. Mas também se lembra — e com gratidão — dos que souberam proteger. Que a cidade escolha de qual lado quer estar.
Fabrício Correia é educador, escritor, jornalista, historiador e professor universitário. Presidiu a Academia Joseense de Letras e integra a União Brasileira de Escritores – UBE. É CEO da Kocmoc New Future, responsável pela agência de notícias, “Conversa de Bastidores”.